Foi decidido nesta última semana no TJSP que o grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) não poderia utilizar a palavra “católicas” no nome da associação, por ir contra os mandamentos da Igreja Católica[1]. Pretendo ensaiar algumas considerações argumentativas e jurídico-metodológicas sobre a decisão, principalmente quanto ao direito material, portanto sem ressaltar a questão da legitimidade da associação apelante, Centro Dom Bosco de Fé e Cultura.

Neste artigo, sigo a ordem de enunciados da decisão de segunda instância, apontando os mecanismos argumentativos que constituem um corpus de valores, princípios e normas que supostamente a fundamentariam. A análise crítica ressalta justamente a questão da assimilação jurídica de certos valores e a possibilidade de um juízo concreto diante de um horizonte axiológico-jurídico.

O acórdão, logo no início, anuncia que a fé católica não é democrática, citando o apelante[2]. Ivone Gebara, em live feita com o grupo CDD[3], ressalta diversas vezes que a fé é diferente de uma teoria, filosofia, teologia da Igreja Católica. E que, na realidade, é a governança masculinista teocrática da Igreja Católica que não é democrática, não necessariamente a fé, que é expressada individualmente. A característica do regime da Igreja é muito importante para os argumentos que se seguem, já que foi argumentado desde o início da decisão que não se trataria de um sistema democrático.

Os fundamentos se resumem à impossibilidade de o grupo usar o nome “católicas” porque tem ideias e práticas sociais antagônicas com a Igreja Católica, algo inconciliável com normas da Igreja e com pensamentos de padres e outras associações católicas. Diversas vezes são citados longos trechos contra o aborto dessas vozes religiosas.

Na maior parte do acórdão tenta-se enfatizar a notoriedade e a autenticidade do fato de que há uma “incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal” (fls. 327). No ponto n. 17, ainda afirma que a associação apelada defende o direito de decidir pelo aborto, o que “a Igreja condena clara e severamente, há nítido desvirtuamento e incompatibilidade do nome utilizado em relação às finalidades e atuação concreta da associação, o que viola frontalmente a moral e os bons costumes, além de ferir de morte o bem e os interesses públicos, valores expressamente tutelados pela Lei dos Registros Públicos (inteligência do artigo 115 da Lei 6.015/73[4], que inclusive veda o registro de ato constitutivo de pessoa jurídica em tais circunstâncias)”.

A partir disso, encabeça o argumento de que o que a associação tem realizado é um ato ilícito, contra os bons costumes e a moral, apesar de não explicar em nenhum momento como significantes com uma textura tão aberta como estes pode ter.

Em seguida, no tópico 19, começa a transmutar o “direito de decidir” e “direitos reprodutivos das mulheres” em “bandeira do aborto”, sem deixar de mencionar o que a própria associação defende (como pode se ver também, por exemplo, nas fls. 342, no tópico 37, fls. 344 n. 39). Essa estratégia ardilosa deturpa completamente o sentido de ação do grupo. Afinal, há uma diferença crucial entre ser a favor de um direito e ser a favor de um ato. O direito de decidir por abortar implica desigualdades estruturais de classe, racismo e de um cis-heteropatriarcado que proíbe a autonomia da mulher cisgênera e do homem trans de escolherem a continuidade de uma gravidez. Diversos fatores podem contribuir não só para a impossibilidade da escolha desde a concepção, o que inclui violências, desinformação e métodos anticonceptivos que nunca são totalmente eficazes. Já ser a favor do aborto em si é uma questão moral, que pode ou não ser discutida institucionalmente e no caso é tomada uma posição contrária no seio da Igreja Católica. Esta tem legitimidade própria para constituir uma normatização nesse sentido. Contudo, isso não impediu que mulheres católicas abortassem. E o problema do aborto, além da evidente autonomia da pessoa que engravida, majoritariamente mulheres, é a questão da saúde pública. Em outras palavras, é a questão da vida das mulheres, tanto do risco de morte com abortos clandestinos quanto, e principalmente, da continuidade de suas vidas – as integridades física e psíquica.[5]

Ainda no mesmo ponto, segue com o fundamento do Direito Canônico, Cânon 1.398, que ameaça a excomunhão daquelas que pratiquem o aborto (e aqui deixo no feminino por coerência ao necro-cis-patriarcado que esta norma enseja) e afirma que a função da associação apelada “se traduz em inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda à sua autêntica finalidade (e aqui não se está diante de uma associação para fins culturais artísticos que pudesse ou pretendesse usar de ironia na adoção da denominação).” (fls. 329).

Esta é uma das tentativas de assimilar um valor antiaborto da Igreja Católica (não direi que é em favor da vida, porque, como já afirmado, a noção de vida ganha outros sentidos quando olhamos para as vidas das pessoas que não têm o direito de abortar) com a função social de uma associação. No ponto n. 20, assume essa posição com base no art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Caracterizar as ações da CDD como “desserviço” é uma tentativa de deslegitimação frente a uma das possíveis perspectivas católicas, que é algo não reconhecido em nenhum momento, já que a Igreja não é democrática. Como se não houvesse diferentes teologias possíveis, que inclusive mudaram durante os séculos e continuam as disputas de diferentes cosmovisões. Claro, existe esta hegemônica e institucionalizada, o que não impede outras emergentes, transgressoras e críticas. Por fim, não densifica o sentido de “fim social”, nem de “bem comum” neste caso em concreto para conseguir sucesso nessa associação ao art.5º[6] mencionado. Principalmente em um plano democrático de lutas por reconhecimento em situações de injustiça, que neste caso se materializam pelos mecanismos patriarcais de controle sobre os corpos. “Bem comum”, portanto, pode ter diversos sentidos, e não seria este sentido feminista menos valorizado simplesmente por ser feminista.

Outro ponto importante é sobre o artigo 7º do Decreto nº 7.107/2010, da promulgação do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, “segundo o qual A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ASSEGURA, NOS TERMOS DO SEU ORDENAMENTO JURÍDICO, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica E DE SUAS LITURGIAS, SÍMBOLOS, IMAGENS E OBJETOS CULTUAIS, CONTRA TODA FORMA DE VIOLAÇÃO, DESRESPEITO E USO ILEGÍTIMO” (fls. 330, destaque do original). Atesta-se que há violação deste artigo, deixando implícito que haveria um uso ilegítimo de um símbolo da Igreja Católica. No ponto n. 22, constrói um argumento contraditório, porque defende a liberdade de expressão de defender valores e ideias (“inclusive o aborto”), mas assevera que a associação comete ato ilícito por exceder os limites impostos pelo seu fim social e pelos bons costumes, porque “certamente FERE TAMBÉM O SENTIMENTO RELIGIOSO DE UMA ENORMIDADE DE PESSOAS, em um país que segundo o IBGE, em 2020, 50% da população se declara católica” (fls. 331).

Reelaborando o argumento sob uma perspectiva metodológico-jurídica, seria então o art. 5º, inciso XVII, que fundamentaria a limitação da ação de uma associação por não ter fins lícitos. Mas o que são os fins ilícitos da CDD? O uso “ilegítimo” da palavra “católicas”? Porque em seguida, trazer à baila um sentimento abstrato e imputado a metade da população brasileira na verdade é um argumento falacioso que homogeneíza uma cosmovisão (uma filosofia católica específica) para uma posição de fé (católica). Não há qualquer evidência de que cinquenta por cento da população se identificando como católica é contra o direito de decidir. Em outra tentativa de associação entre Direito Canônico e Direito Constitucional, conecta um prejuízo ao sentimento religioso à violação do objetivo de solidariedade do Brasil:

31. Reafirme-se que como bem argumenta a autora – a atuação sob o nome referido e sem autorização eclesiástica/canônica (E nos termos do Can. 300 do Código de Direito Canônico NENHUMA ASSOCIAÇÃO ADOPTE A DESIGNAÇÃO DE “CATÓLICA”, A NÃO SER COM O CONSENTIMENTO DA AUTORIDADE ECLESIÁSTICA COMPETENTE, SEGUNDO AS NORMAS DO CÂN. 312) apenas leva confusão e dissemina erro junto aos menos esclarecidos e mais vulneráveis acerca de doutrina sólida, pública e notória (presente em Catecismo público que pode ser consultado no sítio eletrônico da Igreja Católica (Vaticano); artigos 2272 a 2274, em prejuízo do sentimento religioso, valores e interesses dos fiéis e da associação autora, violando a boa-fé e transparência necessárias à construção de uma sociedade mais justa e solidária, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (Artigo 3º, inciso I da Constituição Federal). (fls. 336-7)

Há aqui um mosaico de ideias que flutuam entre sistemas de direitos diferentes e uma cosmovisão de sociedade muito particular, unívoca e excludente, numa tentativa de generalizar um sentimento a partir de um objetivo fundamental de nossa República. Primeiramente, a expressão “católica” do cânone mencionado se refere a um adjetivo que caracteriza, um grupo, uma associação. Contudo a CDD usa o termo “católicas” enquanto substantivo para nomear simultaneamente uma posição identitária de mulheres que têm teologias católicas (feministas). Ela não demarca ser simplesmente da Igreja Católica. A partir disso, afirmaria que até o problema posto não é juridicamente relevante. Seguindo as lições de Castanheira Neves[7], o problema jurídico é composto por uma relação socialmente objetiva, pela dialética entre a autonomia e a responsabilidade comunitariamente atribuída e a pressuposição ética da pessoalidade. Neste caso em concreto, o problema posto é sobre a ilegalidade do uso do nome “católicas” diante da Igreja Católica representada por uma associação (não pela Santa Sé), a qual representaria também outro fiéis. Conclui-se que não haveria problema juridicamente relevante porque não há norma e princípio que sustentem essa ilegalidade, como temos demonstrado. Há justificativas, não fundamentação axiológico-jurídica. A obrigação da associação seria não usar “católicas” no nome porque vai contra uma teologia institucionalizada? Sendo que não qualifica sua associação como parte da Santa Sé e não vai contra as pessoas católicas ou a Igreja em si, mas disputa sentidos sobre direitos de forma democrática.

Segundo, alguns fiéis e a associação apelante pode discordar da posição, mas em que momento seria isso um prejuízo a seu sentimento religioso e a seus valores? Com certeza seria um prejuízo aos seus interesses, porque seu interesse é manter a doutrina antiaborto para manter o controle necrobiopolítico sobre as mulheres cis e homens trans, que se manteriam nas dificuldades para abortar em casos previstos juridicamente e também criminalizados naquelas formas sancionadas penalmente.

Terceiro, como generalizar uma sociedade “mais justa e solidária” como uma em que a teocracia da Igreja Católica se sobrepõe à democracia nacional? Inclusive este objetivo constitucional sustenta um sistema de divisão de poderes do qual o Judiciário é parte. A incoerência interna deste argumento fica patente, com total desconexão entre uma possibilidade de bilateralidade atributiva de um princípio constitucional que fundamente axiológico-juridicamente uma norma de direito canônico, sendo apenas uma ilusão jurídica constituída em sede de decisão judicial. É um bom exemplo de como a autoridade de juiz não implica necessariamente na validade argumentativa e de realização do direito.

No ponto 34, mais uma vez, retoma a questão da liberdade de expressão que estaria limitada para as questões católicas, porque não se pode ir contra a doutrina. Ora, como conciliar um princípio jurídico de liberdade dentro de uma esfera democrática com um princípio de unidade e obediência da Igreja Católica? Como se este limitasse aquele outro, sendo assimilado pelo sistema jurídico por normas, mas sem assumir uma posição validada por uma bilateralidade atributiva que indique o direito de manifestar um pensamento teológico e a obrigação de não ir contra uma doutrina eclesiástica. Não há possibilidade deste valor religioso ser assimilado juridicamente como parte integrante da limitação da liberdade de expressão, da liberdade religiosa neste caso. Porque esta tem uma dimensão de poder inclusive estar em desacordo com noções morais religiosas. Não se pode diminuir, discriminar, vilipendiar religiões, religiosos e símbolos, porque o discurso de ódio vai contra um horizonte de valores comunitários que temos sustentado –  ou tentado, já que são religiões de matriz africana que mais têm sofrido no Brasil e isso é muitas vezes negado, esquecido, marginalizado. E não é disso que se trata em nenhum momento neste caso.

A ideia também criada no ponto n. 35[8] é muito interessante. Há uma comparação hipotética com outros grupos que se diriam negros ou LGBT, mas que também pudessem ir contra essas mesmas pessoas. Não faz sentido e cria-se uma falsa assimetria. Há com certeza ativistas de movimentos que seguem linhas políticas tão contraditórias com as reivindicações por justiça historicamente feitas, contudo isso também não seria juridicamente relevante. Seria politicamente conflituoso, apenas.

Não seria então este o caso? Por reafirmar a teocracia da Igreja, não há uma assimilação de uma noção democrática sobre o catolicismo, que incorporaria a possibilidade de disputas de sentidos na Igreja, algo que já acontece apesar de tudo, e principalmente de discussões teológicas para além da Santa Sé.

Tanto que no tópico n. 39 (fls. 344 em diante) afirma-se que não podem mudar padrões culturais vigentes, porque a Igreja prega “a unidade e a obediência”. Mas que história é essa de estabilização de uma cultura cristã no Brasil? É a do colonialismo construído em cima do estupro das indígenas, da catequização, do genocídio, das violentas barbaridades, do epistemicídio ainda em andamento. Não há um fim social mais democrático do que denunciar esse colonialismo patriarcal do qual herdamos diversas estruturas injustas e necropolíticas da história da Igreja Católica.

As mulheres são o alvo desta decisão e mantém-se claramente o “poder do macho” e as estruturas masculinitas e hierarquizadas da Igreja como intocáveis, imutáveis, como se vê na concordância com a impossibilidade de ordenação feminina (fls. 349) e da desobediência das mulheres na Igreja (fls. 364).

Em conclusão, há uma justificação bem explícita que é a agenda antiaborto (e também contra o direito de decidir) da Igreja Católica, enquanto há a elaboração de quatro pontos principais que servem premissas para sua decisão contra o nome da associação: a Igreja não é democrática; os direitos fundamentais também devem ter eficácia horizontal (fls. 326, n. 12) e leis infraconstitucionais  seriam aplicáveis para a consideração da ilicitude do ato da associação de usar em seu nome a denominação “católicas”; por se denominar “católica”, fica impedida de desobedecer as ordens canônicas e catequistas quanto ao aborto; e o bem comum brasileiro seria traduzido por essa cosmovisão contra o aborto (direito de decidir). Esses argumentos que tentam se revestir de uma aparente legalidade se dissolvem em suas próprias elucubrações sobre a esfera democrática, apostando em uma incorporação da teocracia na democracia por meio da argumentação que tenta assimilar falaciosamente as normas canônicas no Direito brasileiro, sem correspondências diretas entre valores e princípios normativamente realizáveis. Não é uma decisão que preza por justeza ou justiça, mas por interesses exclusivos de uma camada da população católica que não aceita o debate dialógico-democrático com outras teologias possíveis. É forma de censurar mulheres católicas feministas que lutam por uma sociedade mais livre e igual, com menos sofrimento. Como Ivone diz no vídeo mencionado, essa governança teocrática masculinista nega as dores e os corpos das mulheres. E é isso que essa decisão tenta chancelar ao proibir a denominação de uma associação a partir de uma identidade (“católicas”) que pode ter um alcance benéfico a tantas pessoas católicas em busca de uma crítica ao que está posto e de novas medidas contra as leis injustas que ainda regem o país.

Quem decide pelas católicas por suas autonomias são elas mesmas.

 

Gustavo Borges Mariano é doutorando em Direitos Humanos em Sociedade Contemporâneas no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela mesma universidade.

 


NOTAS

 

[1] Ver mais detalhes em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/335508/associacao-religiosa-pro-aborto-e-proibida-pela-justica-de-usar–catolicas–no-nome.

[2] “7. Pondera que: […] No que diz respeito a fé, os católicos não são democráticos. São inteiramente submetidos a Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta situação é observável pela própria estrutura hierárquica da própria Igreja, onde é devido obediência ao Santo Padre, o Papa que, por assim dizer, lhe é atribuída a “função” de um monarca absoluto. Se católica fosse, a recorrida estaria em plena comunhão com a Igreja.”

[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OOVH5JluQwo&t=3576s.

[4] Art. 115. Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem destino ou atividades ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes

[5] Argumentos nesse sentido podem ser encontrado no livro Gênero e Desigualdades de Flávia Biroli, especialmente no capítulo 4

[6] Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

[7] NEVES, António Castanheira. Uma reconstituição do sentido do Direito: na sua autonomia, nos seus limites, nas suas alternativas. Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, v. 1, n. 1, sep. 2012. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/2965>, p. 27.

[8] “35. Ora, em um exemplo hipotético, uma associação que fizesse uso de denominação ou nome relacionado a um grupo (negros ou pessoas LGBT, por exemplo), mas lutasse concretamente depois por algo que fosse flagrantemente contrário aos interesses e valores de tais grupos, certamente também estaria abusando do direito em sua denominação, em desrespeito aos negros e às pessoas LGBT” (fls. 341)