O triunfo da morte – Pieter Bruegel, o Velho

 

A peste, como não poderia deixar de ser, vem cercada de dúvidas e medo, mas não para algumas celebridades das redes sociais. Na cabeça dessa gente, a crise de dimensão planetária inspira alternativas mágicas para a salvação da economia – não necessariamente dos seres humanos que movem a economia. Nascidas de convicções rasteiras, algumas propostas espalhadas como vírus pelo mundo virtual chamam a atenção. Uma delas, que circula em forma de meme, condiciona a “retomada do crescimento” à redução de salários de políticos e funcionários públicos – assim mesmo, todos colocados no mesmo balaio – e ao fim do isolamento recomendado para conter a pandemia. Os divulgadores da ideia lacradora talvez não se preocupem muito com o conteúdo do que propagam. Contentam-se com a marcação dos seus inimigos supostos.

Esse tipo de pensamento, alimentado por economistas do governo – ou por desinformados, simplesmente –, se baseia em generalizações. Ao denunciar os muitos privilégios autoconcedidos pela assim chamada classe política, os seus autores incluem todo o funcionalismo, sem exceção, entre os beneficiários da mamata. O truque é antigo, e foi o que produziu a ascensão de Fernando Collor de Mello em 1989, apresentado ao grande público como “caçador de marajás”. Não levou muito tempo para o herói fuleiro se revelar uma trapaça, e para se perceber que os tais marajás não passavam de barnabés, batedores de ponto e assalariados como a maior parte da população ocupada. Foram eles, os barnabés, atingidos por medidas inconstitucionais, perseguições e supressão de direitos, enquanto os “políticos” continuaram a engordar suas cotas, tranquilamente.

Massacrar os trabalhadores do serviço público, como quer o Ministério da Economia, vai provocar o desaparecimento de atividades essenciais para pessoas que necessitam do Estado para sobreviver. Nada mais. Servidores públicos não são ricos nem milionários, pagam impostos e Previdência diretamente de seus contracheques e movimentam estruturas que exigem responsabilidade e conhecimento técnico. Nunca foram os culpados pela concentração de renda que faz do Brasil um dos países mais injustos do mundo. Mas é para eles que as armas do governo estão voltadas. São eles os convocados para o “sacrifício” compulsório.

O plano de recuperação da economia sem prejuízo das grandes fortunas e do lucro desmedido voltou a ser vociferado por Paulo Guedes e seus parasitas, a elite empresarial habituada a “não pagar o pato”, num passeio macabro, na manhã de 7 de maio, entre a sede do governo federal e o STF. Sob o comando de Jair Bolsonaro, o presidente que cultua a morte, circunspectos senhores do PIB atravessaram a Praça dos Três Poderes e foram recebidos por Dias Toffoli. Numa sucessão de lamúrias e palavras de desprezo pelos servidores públicos, os “inimigos do povo”, os visitantes pediram ao chefe do Judiciário brasileiro – como se isso fosse razoável, como se isso não fosse uma pressão injustificada, uma agressão à Justiça, um escândalo – decisões compatíveis com os seus interesses. Pediram chancela para o assassinato de milhões de pessoas em tempo de pandemia, condenadas ao trabalho sem fiscalização e sob condições precárias de saúde.

As instituições funcionam, dirão os otimistas, e tudo se resolverá. As instituições funcionam, ora pois, mas elas parecem vocacionadas a naturalizar a barbárie. São elas que silenciam ou tergiversam a cada ato criminoso do capitão-presidente, ou diante do ataque a profissionais da saúde feito por imbecis patrocinados pelo fascismo acampado em Brasília. As instituições estão lá, de braços dados num salão supremo ou em gabinetes suntuosos, prestigiadas por homens feios e suas mãos sujas de sangue. E nada muda.

 

(Publicado no blog do Zé Beto – 8/5/20)