Sob o comando do capitão do Exército eleito em 28 de outubro, o Brasil de 2019 se prepara para virar um país de sangue e morte, um cemitério gigantesco. Pode soar exagerado, mas é o que se extrai do discurso monocórdio que o presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, repete há décadas. Orientado por marqueteiros e assessores políticos, o capitão se conteve nos momentos finais da campanha, valendo-se de atestados médicos que serviram para esconder a sua aversão a debates. Mesmo assim, encontrou espaço para ameaçar seus opositores e prometer levá-los ao cárcere, ao exílio ou à “ponta da praia” – referência a uma base da Marinha, no Rio de Janeiro, utilizada pela ditadura militar para a execução de “inimigos da pátria”. Isso foi dito a uma semana da eleição.

 

 

Bolsonaro é – e sempre foi – um notório incentivador da violência, um soldado cuja noção de segurança pública se resume a armar a população e dar licença para que as polícias atirem primeiro e perguntem depois. Esse “sistema” costuma fazer vítimas. E as vítimas preferenciais estão entre os moradores das periferias, os pobres, os desassistidos, as mulheres, a juventude, os negros, os indígenas e os LGBTs, entre outros grupos que formam as minorias.

Para os adeptos do bolsonarismo, o Brasil, território que dizem amar acima de tudo, poderá ser entregue a quem se dispuser a livrá-lo do atoleiro, do “comunismo” ou de qualquer outro inimigo a ser criado, ainda que mediante a apropriação das suas riquezas, da sua cultura e do seu destino. Não importa o preço. Importa que se estabeleçam limites e castigos aos que não se adaptarem ao novo regime – os destinatários da tortura que o capitão reverencia como método, do exílio ou da eliminação física.

Mas a tragédia bolsonariana não se resumirá à violência explícita. Manchas de sangue também brotarão de decretos de fechamento de escolas e hospitais públicos, da destruição do Sistema Único de Saúde, da revogação do que sobrou de leis trabalhistas, do fim da previdência pública, da censura e do controle militarizado das universidades. Essas possíveis medidas sintetizam, sem filtros, o ideário do comandante-em-chefe. São próprias de um ditador. Não há como relativizá-las.

Bolsonaro é um extremista de direita. Um neofascista primitivo. O que não significa dizer que o seu governo será necessariamente fascista. A probabilidade maior é que se abra, desde logo, um processo de reeducação do “mito”, do seu enquadramento às regras básicas de civilidade. As aparências e as relações internacionais, afinal, pedem um refinamento que o presidente eleito até agora não conseguiu incorporar. Pelas suas primeiras aparições, ainda no domingo em que se deu a votação fatídica, a tarefa será árdua. Naquele dia, acompanhado de alguns dos seus apoiadores mais bizarros, Bolsonaro protagonizou cenas constrangedoras. Depois de ignorar solenemente o Estado laico, numa roda de oração dirigida por um pastor-parlamentar, embaralhou-se na leitura de um punhado de ideias desconectadas e intenções vazias sobre um futuro incerto, reunidas por não se sabe quem.

O período que virá anuncia ações antipopulares contundentes e crise social profunda. As instituições funcionarão – elas funcionaram, lembre-se, no regime militar, sob a tutela de tanques e atos de exceção –, respaldadas numa Constituição que acabou de completar trinta anos em estado agônico, num Executivo medíocre e num Congresso ultraconservador. Eis o resultado da cruzada moralizadora que tomou conta da política nacional com a Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e o ativismo de juízes e membros do Ministério Público responsáveis pelo combate à corrupção, feito à margem de garantias processuais e princípios do direito. Esses atores, auxiliados por órgãos de comunicação que se habituaram a distorcer a realidade, produziram o fenômeno Bolsonaro. Eles e o PT, com seus erros monumentais e sua reconhecida incapacidade de autocrítica.

Venha o que vier, há retrocessos que já se consumaram. Retrocessos políticos, culturais e de costumes. O Brasil de hoje é um país carrancudo, excludente, careta, individualista, preconceituoso e desumano, submetido à narrativa de intolerância que as urnas consagraram. Sair do pântano em que se meteu, restabelecer a alegria perdida, negar o esmagamento da sua identidade nacional, tudo vai depender da capacidade de organização do seu povo. O desafio, agora, é evitar que o capitão consiga pôr em prática o programa de governo que suas intenções revelam. E que não fiquem dúvidas: isso não significa inconformismo de perdedor nem “torcer contra” os anseios da maioria; isso é apenas o exercício democrático da oposição, uma possibilidade que só não existe nas ditaduras.

 

(Texto publicado na quarta-feira, 31/10/18, no blog do Zé Beto – www.zebeto.com,br)