Ariadne Decker

 

O debate sobre os traços característicos do aparelho judicial brasileiro, seus desvios autoritários e sua função de preservar a “ordem”, marcou as atividades da Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça desde a sua origem, em 1998, numa reunião em Belo Horizonte. Inicialmente, sindicatos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, todos vinculados à representação de servidores do Poder Judiciário nos Estados, integraram o movimento. Depois, vieram outras entidades – do Rio de Janeiro, do Maranhão, de Santa Catarina, de São Paulo, do Pará, de Pernambuco, do Piauí, de Mato Grosso do Sul, da Bahia, do Ceará e de Roraima – que compartilhavam a vontade de criar mecanismos de unificação das lutas da categoria em todo o País.

Em seus primeiros anos de existência, a Coordenação trouxe para o centro das suas preocupações a necessidade de democratização da Justiça. “Os órgãos encarregados da jurisdição mantêm uma estrutura fechada, construída a partir do mito da neutralidade, que incentiva práticas autoritárias e repudia qualquer abertura para uma fiscalização popular”, afirmava um dos textos publicados no caderno Justiça & Democracia em novembro de 2003 (n. 3, p. 18).

Fortalecia-se, naquela época, um discurso que pregava a necessidade de tornar a Justiça cada vez mais “previsível”, repetido insistentemente por setores ligados a grupos financeiros. Esse objetivo orientava as tentativas de reforma constitucional do Poder Judiciário. “Propostas encaminhadas ao Congresso Nacional durante o governo de Fernando Henrique Cardoso adotaram como fonte inspiradora o Documento Técnico 319, do Banco Mundial (O setor judiciário na América Latina e no Caribe). Ali, foram lançadas as bases para a criação de um sistema jurídico que tem por finalidade principal dar respaldo doutrinário a políticas neoliberais impostas às economias periféricas” (op. cit., 2003, p. 20).

Estava em jogo a “necessidade do capital de contar com um Estado provedor, um Estado que mantenha a sociedade anestesiada e disposta a colaborar com o mercado” (Justiça & Democracia n. 4. jan. 2005 p. 28). Ou seja, um Poder Judiciário com independência formal, imparcialidade, credibilidade e voltado primordialmente para a proteção da propriedade privada. “São conceitos que têm um significado geral, mas que se aplicam, dentro dos objetivos propostos pela instituição, na perspectiva do ‘respeito aos contratos’ e na lógica do mercado” (op. cit., 2005, p. 29).

Com base nessas ideias, e disposta a apresentar a versão dos trabalhadores sobre o tema, a Coordenação realizou seis encontros nacionais, defendeu uma tese no Fórum Social Mundial de 2001, em Porto Alegre, posteriormente publicada e distribuída a todos os membros do Congresso Nacional (A luta pela democratização do Poder Judiciário), e manteve a edição de um jornal mensal (Jornal da Coordenação) e um caderno de debates (Justiça & Democracia), além de elaborar cartilhas em defesa da Previdência pública, contra a reforma sindical e com o resumo histórico do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.

No final de 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, que consolidou a reforma do Judiciário e criou, como órgão de fiscalização dos tribunais e seus agentes, o Conselho Nacional de Justiça. O novo mecanismo de controle não impressionou a Coordenação, que, em editorial de um de seus órgãos de comunicação, contrapôs: “[…] A criação de um conselho para fiscalizar os atos de juízes, apresentada como uma forma de ‘controle externo’, caracteriza uma solução incompleta. O colegiado foi idealizado como órgão composto, em sua grande maioria, por pessoas vinculadas ao aparato judicial, deixando de abrigar representantes da sociedade. Nada vai acrescentar às tentativas de democratização do setor. […] O Judiciário, com sua estrutura fechada, continuará afastado da população, representando a face mais desconhecida do Estado” (Jornal da Coordenação, n. 58, nov. 2004, p. 2).

A Coordenação suspendeu o seu funcionamento em 2007, atingida por dificuldades enormes de sustentação, retomando-o em 2019, num ambiente de protagonismo político do Poder Judiciário. As reformulações verificadas nesse período não eliminaram o ranço autoritário dos órgãos encarregados da jurisdição. Pelo contrário. O raciocínio jurídico imposto pela Lava Jato, por exemplo, uma operação “moralizadora” forjada a partir de 2014, inverteu a lógica do processo. Juízes, promotores e policiais passaram a comandar o jogo político, fabricando decisões conforme as suas preferências ideológicas e transformado a ação judicial em detalhe técnico para a consecução de objetivos definidos previamente.  Caracterizou-se o que Veríssimo (2013, p. 59) identifica como “julgamento orientado para um resultado”. Nessa modalidade de ativismo, “o ponto de chegada não é uma conclusão natural do percurso, da colheita de provas, da interpretação, mas é algo que parece ser desejado e, eventualmente, tem a finalidade de transformar a realidade, transformar uma situação indesejada”. Disso tudo resultou o esfacelamento do sistema penal de garantias e o ataque a princípios democráticos elementares, como o da presunção de inocência do réu.

Como se vê, a pauta definida pela Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça há mais de vinte anos não perdeu atualidade. Por isso, o movimento, que ganhou notoriedade ao defender mudanças estruturais no Poder Judiciário, está de volta. Que seja para ficar.

 

Texto publicado originalmente na revista Contra Legem (Rio de Janeiro: Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça. n. 8, jul/2019, p. 40-42), com o título A Coordenação e a atualidade do debate sobre o Poder Judiciário.

 


Referências

 

JORNAL DA COORDENAÇÃO. Nada de novo. n. 58. nov. 2004. p. 2.

JUSTIÇA & DEMOCRACIA. Alguns aspectos da reforma do Judiciário. Curitiba: Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça. Ano II. n. 3. nov. 2003. p. 17-21.

JUSTIÇA & DEMOCRACIA. Os desafios do Poder Judiciário e a necessidade de uma administração democrática. Curitiba: Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça. Ano IV. n. 4. jan. 2005. p. 26-31.

VERÍSSIMO, Marcos Paulo. Controle de constitucionalidade e ativismo judicial. In: WANG, Daniel WeiLiang (Org.). Constituição e política na democracia: aproximações entre direito e ciência política. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 53-73.