Marco Aurélio: em 2006, ministrou do STF afirmou que proibição de progressão de regime viola a garantia da individualização da pena

 

O pacote de reformas legislativas apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, no dia 4 de fevereiro, propõe o regime fechado como inicial para cumprimento da pena por certos crimes, como corrupção, e proíbe a progressão de regime se o condenado for vinculado a organização criminosa. Se aprovadas pelo Congresso, as medidas esbarrarão no Supremo Tribunal Federal (STF). A corte já declarou inconstitucionais regras semelhantes, previstas na Lei de Crimes Hediondos. E já editou até súmula vinculante sobre o assunto.

O projeto do governo estabelece que, se o condenado por qualquer crime for reincidente ou apresentar conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o regime inicial da pena será o fechado. Isso também valerá para os sentenciados por peculato, corrupção passiva e ativa, e roubo com violência ou grave ameaça por arma de fogo, ou destruição de obstáculo com explosivo, ou que gere lesão corporal grave.

A proposta determina que o autor de crime hediondo que culminou na morte da vítima somente poderá progredir de regime após cumprir três quintos da pena. Os sentenciados por esses delitos também não têm direito a saídas temporárias, salvo para tratamento médico ou em caso de morte de parente – direito que foi negado em duas instâncias ao ex-presidente Lula até ser concedido, com limitações, pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli.

O texto ainda proíbe o condenado por organização criminosa de progredir de regime ou obter outros benefícios prisionais se houver indícios de que ele continua vinculado à entidade. Os líderes de facções armadas deverão iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima.

Justificativa semelhante – A Constituição Federal, no artigo 5º, XLIII, determina que a “lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

Em 1990, após uma onda de sequestros de grande repercussão — como os dos empresários Abílio Diniz, em São Paulo, e Roberto Medina, no Rio de Janeiro —, o senador Odacir Soares apresentou o Projeto de Lei 50/1990. O objetivo era endurecer as penas de sequestro e extorsão mediante sequestro, que passariam a até 30 anos de prisão em caso de sequestro hediondo, o seguido de estupro, lesão corporal grave ou morte. “O aumento da pena destina-se, como é óbvio, a desestimular os eventuais criminosos”, alegou o parlamentar.

Sergio Moro apresentou justificativa semelhante em seu pacote. Segundo ele, o objetivo da lei penal é desestimular atos delituosos. “Endurecer tem um efeito preventivo”, disse. “A lei pode funcionar como fator inibidor do comportamento criminoso. É fundamento do Direito Penal, inclusive.”

O texto inicial do PLS 50/1990 estabelecia que a pena para sequestro e extorsão mediante sequestro seria cumprida integralmente em regime fechado, não admitindo remição por trabalho executado nos presídios. Além disso, a proposta tornava os crimes imprescritíveis e proibia a concessão de liberdade provisória.

Depois de idas e vindas no Congresso, o texto final da Lei 8072/1990 também considerou hediondos os crimes de latrocínio; extorsão qualificada pela morte; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado morte; envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte; e de genocídio. A lei previa que a pena por crimes hediondos e os equiparados àqueles, como tortura, tráfico de drogas e terrorismo, seria cumprida integralmente em regime fechado.

Individualização da pena – Porém, o Supremo Tribunal Federal declarou, em 2006, a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos – que estabelecia que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado.

O relator do habeas corpus 82959, ministro Marco Aurélio, apontou que a obrigatoriedade do regime fechado conflita com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º, XLVI, da Constituição.

Em voto-vista, o ministro Cezar Peluso destacou que a Constituição, ao criar a figura do crime hediondo, não proibiu progressão de regime. Nem tratamento mais severo, seja quanto ao aumento de penas, seja quanto à sua execução. Dessa maneira, Peluzo avaliou que a proibição de progressão de regime só seria válida se estabelecida pela Constituição, mas não por lei ordinária, como ocorreu com a Lei dos Crimes Hediondos.

Com isso, o STF editou a Súmula Vinculante 26: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

Nova decisão – Devido a essa decisão do STF, a Lei dos Crimes Hediondos foi alterada pela Lei 11464/2007. A norma fixou que a progressão de regime para os condenados por crimes hediondos ou equiparados ocorrerá após o cumprimento de dois quintos da pena, se o réu for primário, e de três quintos, se reincidente. No entanto, ficou mantido o regime fechado inicial.

Mas o STF também considerou inconstitucional essa obrigatoriedade em 2017, no Agravo em Recurso Extraordinário 1.052.700. O relator do caso, ministro Edson Fachin, destacou a necessidade de reafirmação de jurisprudência em razão da relevância do tema.

Segundo ele, embora esteja consolidado no STF o entendimento de que é inviável a fixação do regime inicial fechado unicamente em razão da hediondez do crime, essa orientação é “comumente descumprida pelas instâncias ordinárias”, sob o argumento de que a declaração de inconstitucionalidade, por ter se dado de forma incidental, não teria efeito erga omnes (para todos) e sua aplicação não seria automática.

O ministro lembrou, ainda, a necessidade de se observar o princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI) na definição do regime prisional.

“Considerando a manifesta relevância da matéria suscitada, que ultrapassa os interesses subjetivos das partes, reputo necessária a submissão da questão à sistemática da repercussão geral, forte no alcance da orientação firmada por esta Corte acerca da fixação do regime inicial fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado”, afirmou o relator.

Na ocasião, a corte firmou a Tese de Repercussão Geral 972: “É inconstitucional a fixação ex lege, com base no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/1990, do regime inicial fechado, devendo o julgador, quando da condenação, ater-se aos parâmetros previstos no artigo 33 do Código Penal”.