STF declarou: prisão deve estar condicionada ao princípio da presunção de inocência do réu

 

A discussão sobre início do cumprimento da condenação criminal polarizou-se, mas uma parte do diagnóstico é consensual: o Supremo Tribunal Federal, nesta matéria, chacoalhou ao sabor dos ventos. Tratou sua jurisprudência com descaso e oscilou de maneira juridicamente inexplicável, pois não mudaram nem o problema jurídico nem o texto da Constituição. Resta tentar identificar quando, e por que, o Tribunal fraquejou — se em 2016, quando passou a admitir prisão após condenação em segundo grau, ou se agora, ao voltar a seu entendimento de 2009, que alinhara a jurisprudência da Corte à Constituição de 1988.

Se as divergências políticas que o tema suscita são máximas, a discussão jurídica deveria ser tediosa. Não há muitas dúvidas de que a Constituição de 1988 inovou em relação às anteriores e previu um marco inicial distinto para início da execução da pena: se antes exigia-se mera “sentença judiciária”, agora fala-se em “trânsito em julgado”, sendo necessário que a condenação torne-se imutável pelo esgotamento dos recursos. Para o bem ou para o mal, a escolha da Constituição é explícita e inequívoca.

No julgamento de 2009, o STF enfrentou seu entulho jurisprudencial construído sob constituições anteriores, e sob leis, como o Código de Processo Penal de 1941, recheadas de dispositivos que ordenavam prisão em juízos antecipados de culpa. Foi apenas um de muitos temas nos quais o Supremo deu à presunção de inocência o vigor que a Constituição de 1988 quis.

O texto constitucional era o mesmo em 2016, mas a pressão sobre o tribunal por uma mudança na sua jurisprudência era ímpar. Facilitar a prisão, a qualquer título que fosse, era fundamental para azeitar engrenagens de colaborações premiadas. A Lava Jato, ainda não exposta pelas reportagens do The Intercept, gozava de enorme capacidade de mobilização junto ao tribunal, à imprensa e à parcela da opinião pública que sabe vocalizar suas opiniões e seus interesses.

Um dos ministros que estava presente em 2009, e que votara então contra a execução antecipada da pena, aceitou permiti-la em 2016: Gilmar Mendes. Não foi a única vez que contrariou seus próprios entendimentos para comungar dos propósitos da operação que hoje tanto critica: antes defensor da opinião de que partidos políticos só podiam impetrar mandado de segurança em favor do interesse de seus filiados, o mesmo ministro decidiu aceitar a ação proposta pelo PPS para tutelar o suposto direito difuso de Lula não ser ministro da Casa Civil. Deferiu medida liminar e impediu sua posse. O ano de 2016 foi o auge do lavajatismo no STF.

O retorno do ministro Gilmar Mendes à sua posição de 2009 ajuda a devolver o entendimento correto à matéria, ao menos enquanto não se alterar a redação da Constituição. No meu entender, é cabível emenda constitucional para que recursos ao STJ e STF adquiram natureza de ações impugnativas autônomas, que não impediriam o trânsito em julgado de decisão condenatória de segundo grau. Os núcleos essenciais dos direitos fundamentais em questão não seriam atingidos por tal alteração.

Aos céticos quanto à mudança pela via legislativa, vale lembrar que todas as leis que hoje emparedam políticos são recentes, e foram aprovadas por esta mesma geração parlamentar cujo coração palpita quando a campainha toca às seis da manhã: Lei das Organizações Criminosas (2013), Lei Anticorrupcão (2013), reforma da Lei da Lavagem de Dinheiro (2012), Lei de Acesso à Informação (2011) e Lei da Ficha Limpa (2010), entre outras. Se a pressão popular que balançou o STF for dirigida a deputados e senadores, talvez o assunto ande devidamente no Congresso.

O STF falhou à sua missão em 2016, quando submeteu a Constituição a uma portaria, documento que pôs de pé a força-tarefa de Curitiba. Sacolejou ao sabor dos ventos, gerou elevada insegurança, negou direitos constitucionais a milhares de condenados e aumentou a exposição do Tribunal à polarização hoje existente.

Além do mérito, errou também no procedimento: sob pretexto de não fulanizar a discussão ao caso do ex-presidente Lula, adiou decisão de um caso que estava maduro para julgamento desde a presidência da ministra Cármen Lúcia, torcendo por um momento oportuno que nunca veio. Ao contrário, a indefinição prolongada, somada ao entendimento que oscilou como biruta de aeroporto, esgarçou a reputação do Tribunal. Deixou a impressão de que o STF receia em dar cabo à sua mais elementar função: fazer cumprir a Constituição e proteger direitos dos cidadãos em casos politicamente sensíveis.

Para quem olha o copo meio cheio, talvez o tribunal tenha aprendido a lição: nesse caso, perceberá que não pode tergiversar na defesa da Constituição, nem deve deixar de zelar pela coerência e integridade de sua jurisprudência para atender à pauta popular do dia. Para quem vê o copo meio vazio, foram preocupantes as piscadelas do ministro Antonio Dias Toffoli ao Legislativo, parecendo sugerir mudança no artigo 283 do Código de Processo Penal (que, tal qual está hoje, igualmente proíbe execução antecipada da pena), a despeito da inequívoca disciplina constitucional sobre o tema, de superior hierarquia. É necessário aguardar a publicação do voto para uma melhor avaliação. Mas até que sobrevenha eventual mudança por parte do Poder Legislativo, a questão está pacificada, e a posição que hoje temos é a que melhor respeita a letra e o espírito da Constituição.

 

Rafael Mafei Rabelo Queiroz é professor da Faculdade de Direito da USP.