Beatles forever: produto musical exportado pela Inglaterra é melhor do que as PPPs

 

Pode parecer estranho juntar o futebol, os Beatles e Parcerias Público-Privadas (PPPs) num texto. Mas há boas razões para tal. São três das mais bem sucedidas exportações da Inglaterra para o mundo. Inventado no século dezenove, o jogo da “bola no pé” logo se transformou no mais famoso esporte mundial. Sujeito a um conjunto de regras sólidas que definem o que é (e não é) permitido, e árbitros independentes para fiscalizar comportamentos e resolver disputas, o futebol a todos fascina independentemente das nossas alianças tribais. Como num mercado eficiente e competitivo, ganha no futebol a equipe com mais talento e técnica, e os incentivos para jogarem bem são poderosos. Os Beatles, claro, são outra história. Eles eram os melhores do mundo. Não havia mercado eficiente nem competição. Podiam pedir honorários astronômicos como qualquer outro monopólio não regulado. Mas o valor criado para aqueles que os fossem ouvir ultrapassava largamente o custo.

Isto tudo a propósito das parcerias público-privadas (PPPs), outra exportação britânica ao mundo que ganhou fama no final do século vinte. O sucesso foi de tal forma que instituições multilaterais como o Banco Mundial ainda hoje veem as PPPs como a grande aposta para o progresso socioeconômico dos países em desenvolvimento na América do Sul, África e Ásia. Isto quando, curiosamente, na Inglaterra as PPPs caíram fora de moda na última década e estão hoje completamente postas de lado pelos governos e políticos, e até foram designadas como a “mais estúpida exportação de Inglaterra.” Mas antes de analisarmos o que correu mal com as PPPs, e as razões que levaram ao fracasso, temos de perguntar primeiro o que é uma PPP?

Uma PPP não é mais que uma aliança estratégica entre uma empresa privada e um ator público, por exemplo, o governo central, um governo local, ou mesmo um hospital público. Numa PPP, o ator privado e o ator público colaboram para produzir em conjunto valor coletivo, em vez de competirem como no futebol. A colaboração é governada por um contrato legal e fiscalizada pelas instituições legais, políticas e judiciais no contexto que determinam as regras do jogo.

A grande virtude da PPP para o ator público é permitir desenvolver infraestrutura  básica, tal como hospitais, escolas, estradas e pontes, e fazê-lo “off balance sheet”, isto é, sem aumentar a dívida pública – uma condição atraente para governos que estejam sob pressões fiscais elevadas como o inglês. Uma PPP é também vantajosa para o ator público aceder às vastas competências técnicas e de gestão do setor privado e correspondente estrutura de incentivos para encorajar eficiência, inovação e risco.

No entanto, “there´s no such thing as a free lunch”, isto é nada é de graça. A complexidade da PPP começa na assimetria de capacidades entre os dois parceiros. Esta assimetria é uma faca de dois gumes – desejável do ponto de vista de competências, cria enormes obstáculos para escrever um contrato que garanta uma distribuição equitativa de valor. E o resultado frequente é a nacionalização do risco, a privatização do lucro. Esta é uma das primeiras razões pelas quais as PPPs fracassaram.

São muitos os exemplos na Inglaterra de entidades hospitalares públicas que hoje estão tecnicamente falidas devido às responsabilidades que assumiram há alguns anos com as PPPs para construção de novas unidades hospitalares. Ao princípio, a PPP foi muito atraente. Sem ter que pedir dinheiro emprestado, a entidade hospitalar pode “comprar” um novo hospital que seria pago no período acordado com o consórcio privado. Anos depois, estes hospitais descobriram que subestimaram a agressividade comercial do parceiro privado e que na realidade as PPPs são governadas por contratos inflexíveis que implicam custos elevadíssimos cada vez que o parceiro público tem necessidade de adaptar o hospital para acompanhar inovação tecnológica e de serviços.

Uma segunda razão para a perda de popularidade das PPPs foi a constatação que com o tempo alguns atores privados foram comprando PPPs e acabaram por adquirir vastos portfólios de PPPs hospitalares, o que lhes permitiu beneficiar de economias de escala. No entanto, os contratos individuais de cada PPP permaneceram válidos, não permitindo à entidade pública vir a beneficiar dessas mesmas economias na totalidade. Também no domínio da construção de escolas públicas, algumas autoridades locais inglesas hoje se arrependem de terem usado PPPs para construir esses bens comuns.

O problema é que a população infantil oscila e houve casos de mudanças demográficas que tornaram a nova escola desnecessária, mas o ator público continua obrigado a honrar as responsabilidades. A crise financeira é uma terceira razão para o fracasso das PPPs. Por um lado, as regras mais apertadas de concessão de crédito tornam difícil aos empreiteiros hoje conseguirem dos bancos créditos a condições econômicas razoáveis, inviabilizando as parcerias. Por outro lado, a tomada de consciência de que a “festa acabou” e as PPPs “têm de ser pagas” dos orçamentos anuais coincidiu com a entrada da Inglaterra num período de austeridade após o disparo da dívida pública com o resgate aos bancos – e daí que o período áureo das PPPs seja hoje comparado a dar um cartão de crédito a um adolescente irresponsável para ir às compras.

Exemplos da perda de popularidade das PPPs começam-se a suceder pouco e pouco pelo mundo fora. Por exemplo, uma PPP para um centro hospitalar no Lesotho, em tempos celebrada como o futuro de África, hoje estrangula as finanças públicas do Ministério da Saúde. Em Portugal,  as rendas das PPPs associadas à construção de uma larga rede de estradas nos anos 90 e 2000 – mas cuja utilização atual está muito aquém das expectativas prometidas pelo governo ao ator privado – tornaram-se um estrangulamento no orçamento do Estado, mesmo após os contratos terem sido renegociados.

Poder-se-ia argumentar que unidades centrais especializadas em PPPs atenuariam o riscos de distribuição assimétrica de valor. Infelizmente não é o caso. O governo inglês era certamente o governo com mais conhecimento de PPPs no mundo e não foi por isso que deixou de entrar em contratos que permitem ao parceiro privado capturar valor de forma desproporcional ao risco – de tal forma que a ideia PPP tornou-se politicamente tóxica. Uma ideia que na sua concepção deveria funcionar como uma parceria, facilmente escorrega para a competição. Só que ao contrário do futebol, a distribuição de valor na PPP é contingente à qualidade das equipes de advogados mobilizadas pelas partes, em vez de ser em função da qualidade dos jogadores em campo. Não é de surpreender que o futebol continue a unir os povos e as PPPs tenham saído de cena em Inglaterra tão depressa quanto entraram.

O fato de os países em desenvolvimento estarem a viver hoje uma lua de mel com as PPPs é, portanto, um grande motivo de preocupação e alerta. Nos tempos que correm, a riqueza e a capacidade de mobilizar recursos financeiros e humanos estão cada vez mais concentradas nas mãos de poucos. Isto significa que nos aproximamos de condições monopolísticas no que diz respeito ao mercado das PPPs. São muitos os países em desenvolvimento que gostariam de celebrar PPPs.

São muitas as suas necessidades em termos de infraestruturas. Basta pensar que só a África tem a população mais jovem do mundo, uma população que irá duplicar à volta de 2050 e que, no final do século, virá a representar 40% da população mundial: as necessidades de escolas, hospitais, vias de transporte, redes eléctricas, água e de saneamento são quase infinitas. Mas quanto mais incipientes são as instituições nestes países, maiores são as margens de lucro exigidas pelos investidores privados à mesa de negociações para mitigar o risco. Isto significa que os governos não têm poder negocial para disputar preços e condições contratuais. Ao limite estamos a falar de monopólios e mercados ineficientes – como os Beatles que podiam pedir o que queriam.

Em suma, serão as PPPs a exportação mais estúpida de Inglaterra? Parece uma observação injusta. Não vamos ser ideológicos nem normativos. Como em tudo na vida, há boas e más PPPs. Se houver distribuição equitativa de valor, as PPPs são um instrumento de criação alargada de valor coletivo. Mas sejamos também realistas e pragmáticos. As PPPs estão longe de criar as condições de competição que apreciamos no futebol ou o valor alargado dos Beatles. Quando um ator público entra numa PPP, ele não está constrangido e fiscalizado pela concorrência, mercados eficientes e necessidade de maximizar o lucro. Ao contrário, um ator público opera constrangido por calendários eleitorais, mercados ineficientes, direitos de propriedade indefinidos e pressões políticas para “comprar” votos. Noutras palavras, o ator público senta-se fragilizado à mesa de negociações e dificilmente ganha o braço de ferro com o ator privado. E estas condições criam um risco real elevado de distribuição assimétrica de valor.

Não é portanto de surpreender que a lua de mel com as PPPs acabe mais dia menos dia. Aconteceu ontem na Inglaterra, hoje em Portugal e no Lesotho. E amanhã poderá vir a acontecer nos países em desenvolvimento onde hoje os políticos e os governos vêm as PPPs como o “El Dorado” para resolver os grandes problemas das sociedades. “Be careful with what you wish for” – tenham cuidado com as tentações!

 


Nuno Gil é professor titular de New Infrastructure Development – Universidade de Manchester. Coordenador do Infrastructure Development Research Group – Universidade de Manchester.