Fla-Flu nos tribunais: o Direito transformado em disputa de paixões, na visão crítica de Lenio Luiz Strec

 

Dois assuntos: o Fla-Flu do Direito e o dia em que o estagiário transferiu uma audiência (minha versão)!

A discussão do julgamento do Supremo Tribunal Federal no Inquérito 4.435 acerca da competência da Justiça Eleitoral desnudou, de novo, a prevalência dos discursos morais-teleológicos-consequencialistas sobre o Direito escrito-legislado-constitucionalizado. Teve de tudo: “O julgamento do STF acabou com a Lava Jato!”, “Fechem o STF!”, e outras adjetivações impublicáveis – todas elas na linha da Tese “Um Cabo e um Soldado” (“não precisa nem de um jeep”, não é?) Teve até quem replicasse post com ameaças de apedrejamento da Suprema Corte. Tempos difíceis e quentes.

Jornalistas e jornaleiros, advogados e adevogados, juristas e cobradores de juros abriram as baterias. Se a decisão fosse 6×5 em outra direção, essas mesmas pessoas diriam: “O STF mais uma vez acertou!” Pois é. Fla-Flu jurídico. Precisamos, mesmo, falar sobre Direito e moral.

Dentre os 6 votos que compuseram a maioria, duas partes do voto de Celso de Mello explicam e deixam claro o imbróglio. Os grifos são meus:

É, portanto, na Constituição e nas leis — e não na busca pragmática de resultados, independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta pela ordem jurídica — que se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade e o valor da liberdade.

A citação acima coloca a questão no plano do constitucionalismo contemporâneo. Já a citação seguinte passa uma régua técnica na questão:

É por essa razão que — em interpretação sistemática do artigo 35, II, do Código Eleitoral, e do artigo 78, IV, do CPP — no concurso entre a jurisdição penal comum e a especial (como a eleitoral), prevalecerá esta na hipótese de conexão entre um delito eleitoral e uma infração penal comum […].

Tudo muito simples. Ou não, se você politizar. Para superar a clara dicção e a tradição do conceito de conexão seria necessária uma alteração legislativa. Argumentos consequencialistas (sem empiria, diga-se) não podem derrubar leis. Seria como admitir que um pamprincípio como o da “afetividade” valha mais do que um dispositivo do Código Civil, para usar um dos flertes dos juristas para com a primazia da moral sobre o Direito. Como se um argumento retórico ad hoc tirado do bolso valesse mais que o estatuto epistemológico, para usar o termo de Otávio Luiz Rodrigues Jr., autêntico e tradicional, de um mesmo ramo específico do Direito.

Tudo isso ocorre porque nos acostumamos a colocar argumentos morais, políticos e econômicos acima da lei e da Constituição. Professores em sala de aula são useiros e vezeiros nisso. E os livros de Direito são glosadores de decisões tribunalícias ad hoc. Resultado: uma algaravia. Ganha quem tiver mais poder. E o Direito, que foi feito para controlar o poder, transforma-se em mero instrumento… do poder.

Darcy Ribeiro disse, certa vez, que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda necessitamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades do óbvio. Parafraseio, pois, o grande antropólogo: ainda precisamos de uma certa classe de juristas para dizerem o óbvio, para dizerem até mesmo platitudes; platitudes como a de que, em uma democracia, argumentos consequencialistas (morais, etc.) não devem valer mais do que aquilo que justamente foi feito para resolver os nossos disagreements: o Direito. Só se resolve o emotivismo a partir de um critério; pois é: emotivizaram o critério.

Simples assim. O resto é Fla-Flu, Grenal e quejandos.

 

Ainda sobre isso. O humor que destrói. Que banaliza.

Precisamos falar sobre Direito e moral. Precisamos falar sobre uma Teoria do Direito que vira Teoria Política do Poder. E precisamos falar sobre o papel da (des)informação midiática.

Ideologização do Direito. Instrumentalização do jurídico. Emotivismo, consequencialismo, retórica ad hoc. Tudo isso presta um serviço ao fascismo.

Por isso tudo: por ideologizar o Direito, instrumentalizar o jurídico, por adotar a retórica emotivista-consequencialista, a Globo, através de seus atores, prestou um serviço ao fascismo. Vejam aqui [vídeo produzido pelo grupo Globo] como é fácil reproduzir as tão velhas quanto falaciosas relações feitas pela mídia entre a legislação penal e a impunidade; relações que a Globo reforça. Uma parte do vídeo diz:

Só Código Processual Penal, associado a muito dinheiro e bons advogados, traz aquela sensação de impunidade. Graças ao Código posso levar uma vida de crimes, sem restrição. Obrigado doutores.

E a cena mostra o personagem, saindo da cadeia, abraçando seus advogados. Bom, vejam e ouçam. Tem ainda a parte final…! Acessem. O título do vídeo poderia ser Kill all the lawyers, imitando Jack, o açougueiro, de Henry VI. Patéticos.

Trata-se de uma criminalização simbólica da advocacia. E uma tentativa de criminalização que é tão covarde quanto carente de valor epistêmico. “Há muitos crimes”, dizem; “logo, a culpa é da lei penal”. É mesmo? Quem disse? E por quê? Qual é o argumento lógico que liga o ser ao dever ser nesse caso?

Sigo. Aqui o paradoxo é duplo: aceitam instrumentalizar o Direito em favor do poder, paradoxo um, através do paradoxo dois: utilizar-se do humor como instrumento do poder.

Pois é: não adianta querer ser Monty Python fazendo o papel de bobo da corte a serviço do rei. Que feio.

Post scriptum: Tomada do Poder: E o estagiário foi fazer provas e o fórum parou! Jabuti não sobe em árvore e ninguém é filho de chocadeira. Por que eu já não me surpreendo? Por que estou estocando mais alimentos? O Direito brasileiro está assim por causa de um “imenso esforço” que se faz. O que dizer de uma audiência criminal, em Fortaleza, que não foi realizada por causa da ausência do estagiário que estava em provas na Faculdade? E o próprio estagiário certifica. Inacreditável: o próprio estagiário certificou! Quer dizer: a prestação jurisdicional depende da presença do estagiário… Eu sabia que a nobre classe estagiária ainda tomaria o poder. Faltava só organização. Aqui está. Ah: o processo criminal transferido tratava de “outras fraudes”! Um cheiro de improbidade ronda o Direito de Pindorama. Um pouco aqui, um pouco ali. E temos os ingredientes do caos. Para lembrar meu lado pitonisa: em 2012 escrevi uma coluna intitulada Tomada do poder pelos estagiários. Eu sabia!

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.