Avenida Paulista, 15 de março: em São Paulo e em todo o País, estudantes e trabalhadores se manifestaram em defesa da educação 

 

Se tivesse estudado a História, Jair Bolsonaro saberia que eleição não é carta-branca para atirar. Se fosse, a reprovação a Dilma Rousseff não teria chegado a 62% dos brasileiros cinco meses após se reeleger com 54,5 milhões de votos e escolher Joaquim Levy para aplicar um ajuste fiscal que não foi combinado com os eleitores. Bolsonaro parece não ter aprendido muita coisa com o ocaso da antecessora.

Quanto mais acirrada uma eleição, mais alargados ficam os fundamentos que inibem, em condições normais, os ataques da cintura para baixo dos adversários. A conjuntura que levou Bolsonaro à Presidência é tão peculiar que permitiu a ele lançar bombas não só a opositores, mas também contra possíveis eleitores. Às vésperas da votação, ele prometia banir os “marginais vermelhos da nossa pátria” – o que, no linguajar bolsonarista, são todos os que não se prestam à obediência cega. Apesar da declaração de guerra, muitos eleitores, emparedados entre o antipetismo e a aversão à retórica do capitão, deram a ele o benefício da dúvida. Bolsonaro venceu.

Entre os milhões de eleitores, muitos conferiram a ele a oportunidade de governar o Brasil não em razão, mas APESAR da postura exibida no seu tempo de deputado e militar praticamente expulso do Exército. Alguns não levaram a sério as declarações; achavam que era brincadeira ou que as polêmicas estavam desbotadas. Outros apostaram que era tudo jogo de cena, que ele não pensava realmente daquela forma e havia aprendido com o tempo; uma vez eleito, ele jamais reproduziria grosserias dos tempos de franco-atirador, como chamar repórter de idiota e deputada de vagabunda; que não diria ser homofóbico com orgulho nem defenderia o fechamento do Congresso ou o fuzilamento de adversários políticos.

De lá pra cá, um único sinal de distensão foi emitido pelo presidente: quando prometeu, na posse, governar para todos. E só. Uma vez empossado, o governo se tornou uma reunião de cabeças alinhadas com o que pensa o chefe. Quem discorda dele ou não faz parte do time é fustigado; quem insiste em discordar é taxado de comunista ou idiota.

A aposta no triunfo do bom senso exigido pelo cargo, feita por eleitores não totalmente identificados com a fala bolsonarista, falhou. Em vez disso, Bolsonaro acreditou que a faixa presidencial era a concessão automática de uma carteira nacional de habilitação para conduzir um trator para onde o nariz apontasse, mesmo que no caminho estivesse parte do eleitorado que votou nele. Com essa licença, dobrou a aposta em anúncios e decretos sem se ater à opinião pública nem aos pilares de um livrinho chamado Constituição. Um desses decretos prevê a ampliação do porte de armas em um país onde 61% dos brasileiros dizem que armas de fogo devem ser proibidas por representarem ameaça à vida de outras pessoas, segundo o Datafolha. Se você é uma dessas pessoas, tendo votado ou não no capitão, lamento dizer: ele não se importa com o que você pensa. Para ele, você e o instituto de pesquisa estão comprados ou lobotomizados pelas teses marxistas, mesmo que você jamais tenha chegado perto de O Capital.

A aposta no confronto – Em menos de cinco meses, a aposta no confronto reduziu o apoio ao governo aos bolsonaristas-raiz, aqueles capazes de aplaudir as falas mais alucinógenas do mito infalível. Mas governar é saber escolher as brigas, e não há registro na História de quem escolheu a educação como inimiga e se deu bem. Se o contingenciamento é inevitável, como quer fazer crer seu ministro Abraham Weintraub, a história do anúncio é uma sucessão de erros. É como avisar o paciente que ele passará por uma operação, com risco de morte, porque merece.

Não tem como dar certo – Na mão de Weintraub, a tesoura do orçamento serviu como objeto de chantagem ideológica. Pois foi isso o que fez o chefe do MEC ao anunciar um piloto de contingenciamento sobre três universidades federais que não se comportaram ao gosto do governo e seriam punidas por motivos de “balbúrdia”; como a declaração pegou mal, ele decidiu democratizar a tesoura para todas as instituições federais e também à educação básica; como ninguém aceitou de bom grado, a saída foi desenhar a medida por meio de bombons. Era um jeito de chamar todos os opositores da medida, que não foram chamados para a conversa, de idiotas, como se a reação fosse resultado de um mal entendido e o ministro precisasse explicar novamente, e novamente, e novamente, e assim sucessivamente até que os contrariados abrissem os braços e pedissem “desculpas, ministro, corta mais que tá pouco”.

Foi assim, à espera do milagre, que Bolsonaro viu crescer o fermento da primeira grande manifestação nacional contra seu governo, realizada no dia 15 de maio. É certo que o candidato derrotado na eleição não tinha nada que dar as caras na manifestação para fazer discurso político, mas o caráter apartidário da manifestação e a legitimidade da demanda eram inegáveis: quem estava lá estava pela convicção de que uma nação não se constrói sem pesquisa, e que medo e perseguição não são compatíveis com o ambiente da sala de aula. Se alguém disser o contrário, é bom desconfiar da sanidade ou dos propósitos da própria vida – dele e dos seus filhos.

Afrontado, Bolsonaro reagiu como sempre age quando não é paparicado: dobrou a aposta no conflito, atribuindo uma manifestação espontânea e organizada em tempo recorde a um grande complô político de quem tenta instaurar um regime socialista no país – daí a referência à utilidade dos “idiotas”, como eram chamados os apoiadores do regime soviético. Como se os regimes socialistas do século passado não tivessem feito exatamente o que ele faz, ou sonha em fazer, com as vozes dissonantes. O sonho de todo sujeito autoritário é governar nas sombras da ignorância, de onde os subordinados mal iluminados só abrem a boca para dizer amém.

Como ainda não chegamos lá, a manifestação de 15 de maio mostrou, por todo o país, que ninguém está disposto a engolir tão fácil os agrotóxicos e inseticidas oferecidos pelo governo como projeto de educação. A sabedoria pedia um mínimo de disposição em ouvir as vozes e cartazes, mas Bolsonaro preferiu chamar os manifestantes de “massa de manobra”. “A maioria ali é militante, não tem nada na cabeça, se perguntar 7×8 pra ele, não sabe. Se você perguntar a fórmula da água, não sabe, não sabe nada. São uns idiotas úteis, uns imbecis, que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais no Brasil”, resumiu o presidente.

Aparentemente, Bolsonaro confunde a fórmula da água, composta por dois átomos de hidrogênio e uma de oxigênio, com a fórmula da bomba H, cujas moléculas são formadas por maus conselhos do tipo:

  • ignore a mensagem das ruas;
  • duvide da inteligência de quem te confronta;
  • ofenda os manifestantes, mesmo que parte deles ou dos pais deles tenham votado em você;
  • mostre o quanto você despreza as universidades e todas as formas de produção e difusão do conhecimento;
  • deixe seu ministro da Educação sozinho no Brasil para explicar no Congresso sem pontes com o governo suas medidas impopulares;
  • faça com que todo mundo desconfie da sua disposição em colocar o Brasil acima de tudo;
  • finja que você não é responsável pela (des)confiança na retomada do crescimento;
  • crie intrigas com militares e parlamentares que podem te ajudar a aprovar as reformas que os economistas esperam;
  • complete cinco meses no cargo sem desenhar uma única ideia que não tenha pólvora ou calibre na composição;
  • por fim, cozinhe tudo em fogo alto, viaje até os EUA para receber uma homenagem que já criou celeuma entre autoridades locais e mostre ao mundo sua propensão à subserviência batendo de surpresa na casa do ex-presidente que inventou a guerra no Iraque e deixou o cargo desmoralizado.

Pronto, temos um país devidamente inflamado, além de curioso para saber como o filho do presidente que prometeu acabar com a corrupção conseguiu comprar 19 imóveis por R$ 9 milhões e revender alguns deles por um preço muito acima do que valia. É bom que o presidente tenha decorado a fórmula da água. Vai precisar de um caminhão-pipa para conter tanto incêndio que ele mesmo criou.

 

Matheus Pichonelli é jornalista e cientista social