O texto abaixo foi escrito por José Geraldo de Ataliba Nogueira (1936-1995), um dos mais importantes juristas brasileiros da contemporaneidade, em 30 de abril de 1990. Trata-se do capítulo final  (Sexta arguição) de uma petição de defesa da Assembleia Legislativa do Paraná nos autos de ação direta de inconstitucionalidade nº 175-2/600, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. O que estava em discussão, entre vários outros dispositivos da recém-promulgada Constituição do Estado de 1989, era o artigo 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que disciplinou as funções de advocacia do Estado, nas quais os assessores jurídicos foram incluídos. A demanda se encerrou em 1993, com o reconhecimento da constitucionalidade do artigo e seus parágrafos. A íntegra do capítulo é reproduzida a seguir.

 

 

Artigo 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 56. O assessoramento jurídico nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a representação judicial das autarquias e fundações públicas serão prestados pelos atuais ocupantes de cargos e empregos públicos de advogados, assessores e assistentes jurídicos estáveis que, nos respectivos Poderes, integrarão carreiras especiais.

§ 1º. O assessoramento jurídico, nos órgãos do Poder Executivo, será coordenado pela Procuradoria Geral do Estado, visando atuação uniforme.

§ 2º. As carreiras de que trata este artigo serão criadas e organizadas em classes, por iniciativa dos chefes dos respectivos Poderes, no prazo de noventa dias da promulgação desta Constituição.

§ 3º. Aos integrantes dessas carreiras aplica-se, no que couber, o disposto no artigo 125, §§ 2º e 3º desta Constituição.

Sustenta o autor [Estado do Paraná] que o caput do artigo 56 é inconstitucional porque estaria permitindo investidura em cargo público sem prévia aprovação em concurso público, efetivando assim servidores em desrespeito ao artigo 37, II, da Constituição Federal.

Ora, basta superficial leitura do artigo 56 para verificar que não tem a eficácia que lhe empresta. O que o dispositivo impugnado prescreve, em síntese, é que os atuais servidores estáveis, ocupantes de cargos e empregos públicos de advogado, assessores e assistentes jurídicos, exerçam atividades de assessoramento jurídico e representação judicial. Atividades, portanto, absolutamente compatíveis com a qualificação profissional que ostentam e postos que ocupam.

[…] Por outro lado, onde, no artigo 56, a efetivação de servidores? A referência a carreiras especiais que deverão integrar não implica efetivação nenhuma. Carreiras e cargos de provimento em caráter efetivo não são conceitos indissociáveis. A existência daquelas não pressupõe necessariamente a existência de cargos efetivos. Pode haver carreiras compostas de cargos efetivos e carreiras compostas de empregos ou funções públicas.  Pode haver carreira de funcionários estatutários e carreira de servidores submetidos ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho [situação prevista na época].

Os servidores estabilizados pelo artigo 19 do ADCT da Constituição da República devem integrar mesmo quadro especial destinado à extinção na vacância, como sustentou o professor  Márcio Cammarosano, da PUC de São Paulo, já em maio de 1989, ao ensejo de palestra proferida na Fundação do Desenvolvimento Administrativa do Estado de São Paulo (Fundap). E, enquanto permanecerem em serviço, nada obsta que integrem carreiras especiais.

Só estarão efetivados quando – observadas as exigências constitucionais e legais pertinentes – passarem a titularizar cargos de provimento em caráter efetivo, ingressando na carreira pertinente ao cargo assim provido. Portanto, o caput do artigo 56 questionado não é ofensivo, em absoluto, quer ao artigo 37, II, da Constituição Federal, quer ao artigo 19, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da mesma Constituição.

Também não tem a menor procedência a alegação de que o artigo 56 seria inconstitucional porque subtrai competência que a Constituição do Estado outorga à Procuradoria Geral do Estado. Ora, se inconstitucionalidade houvesse, não seria por ofensa à Constituição da República, razão pela qual seria incabível, nesse particular, a presente ação. Todavia, como se pode sustentar que uma Constituição esteja sendo violada por um de seus próprios dispositivos?

O artigo 56 questionado integra, obviamente, a Constituição do Estado do Paraná. Como professa José Afonso da Silva, “as normas das disposições transitórias fazem parte integrante da Constituição” (in: Aplicabilidade das normas constitucionais. RT, 1992, p. 190).

No que concerne ao § 1º do artigo 56, a alegada inconstitucionalidade derivaria da inconstitucionalidade do caput desse mesmo artigo. Em sendo este o cerne da argumentação do autor desta ação [Estado do Paraná], inconstitucional não é o § 1º porque, como demonstrado, o caput do artigo 56 não viola a Constituição Federal.

Quanto ao § 2º, inconstitucional seria porque “é detalhamento do comando principal”. Esse argumento também não tem procedência pela mesma razão da improcedência da alegada inconstitucionalidade do § 1º.

Finalmente, pretende o governador do Estado ver declarada a inconstitucionalidade do § 3º do artigo 56 em razão do disposto no artigo 37, XIII, da Constituição Federal, que veda “vinculação ou equiparação de vencimentos, para efeito de remuneração de pessoal do serviço público, ressalvado o disposto no inciso anterior e no artigo 39, § 1º”. Com esse argumento, o governador do Estado quer ignorar tanto a finalidade do dispositivo que ataca quanto o sentido do dispositivo da Constituição de 1988 em que se baseia a pretensão.

A finalidade do § 3º do artigo 56 em exame é, tão somente – em respeito ao princípio constitucional da isonomia –, conferir o mesmo tratamento, no que couber, aos servidores que exercerão atribuições da mesma natureza, e que nada têm de incompatível com a diversidade da natureza do vínculo empregatício que mantêm com o Estado. Titulares de cargos de provimento de caráter efetivo e servidores estáveis ocupantes de empregos públicos, que exercem igualmente atribuições da mesma natureza, quando não idênticas, hão de receber igual tratamento, no que couber, como prescreve o § 3º impugnado.

A propósito, urge não confundir, como adverte José Afonso da Silva, isonomia com equiparação ou vinculação para efeitos de vencimentos. Isonomia, professa, “é igualdade de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados”. “Equiparação é igualação jurídico-formal de cargos ontologicamente desiguais”. “Enquanto a isonomia postula tratamento igual para situações iguais ou assemelhadas, a equiparação quer tratamento igual para situações desiguais” (op. cit. p. 576). Assim sendo, o dispositivo impugnado em nada desrespeita a Constituição de 1988. Dá, isto sim, cumprimento ao princípio cardeal da isonomia.

 


José Geraldo de Ataliba Nogueira (1936-1995) foi escritor e professor de Direito na USP e na PUC-SP.