Preliminarmente

Na vida real:

– James Joyce (Dublin, 2/2/1882 – Zurique, 13/1/1941)

– Nora Barnacle, mulher de Joyce (março 1884 – 10/4/1951)

 

Joyce e Nora: vida comum repleta de dificuldades, em que a única coisa estável era a entrega resoluta ao trabalho

 

Nora Barnacle nasceu em Galway/Irlanda, e fugiu de casa após levar uma surra de um tio, pois teria se engraçado com um rapaz protestante. Tinha, então, 20 anos de idade. Em Dublin, arranjou emprego de camareira no Finn’s Hotel. No dia 10 de junho de 1904, quando descia a Nassau Street com seus sapatos rasgados, esbarrou no dublinense James Joyce, este então com 22 anos de idade. Papearam. Ele foi fisgado. Veio então a noite de 16 de junho de 1904 (e a madrugada seguinte), quando as carícias dela (na ocasião não chegaram às vias de fato) teriam feito dele um homem. É por isso que “Ulisses” é situado em 16 de junho de 1904. Nora e James passaram o resto das suas vidas juntos, inclusive quando exilados em Trieste, Zurique e Paris. Tiveram um casal de filhos e uma vida comum repleta de dificuldades, em que a única coisa estável parecia ser a entrega resoluta de Joyce ao trabalho. Além de “Ulisses”, o autor escreveu “Dublinenses”, “Finnegans Wake”, “Um retrato do Artista Quando Jovem”, “Finn’s Hotel”, etc., tornado-se um marco na literatura mundial.

 

INTRODUÇÃO À OBRA

No Brasil, três edições e três traduções: Antonio Houaiss (960 págs-1966) – Bernardina da Silva Pinheiro (912 págs-2005) e Caetano Waldrigues Galindo (1112 págs – 2012). Considerada uma obra monumental, inesgotável, com referências incontáveis, permitindo a reflexão e a diversão. Tudo ocorre em 16 de junho de 1904, em Dublin/Irlanda. Todos os anos, principalmente no Ocidente – Brasil no meio -, no mês de junho, comemora-se a obra, com a participação de literatos, leitores, admiradores e críticos do autor irlandês, com a denominação de “Bloomsday”, em alusão a um dos personagens principais do livro, chamado Leopold Bloon. Foi, pela primeira vez, publicado em Paris (1922) e nos Estados Unidos em 1934, não sem antes ser declarado obsceno na América. A paródia tem seu herói em Leopold Bloon, um pobre agente publicitário, que seria o correspondente nada heroico do mítico Ulisses da “Odisseia” de Homero; sua bela e voluptuosa mulher, Molly Bloon, tomaria o papel de uma nada fiel Penélope; já o jovem Stephen Dedalus, seria o correspondente moderno e laico do virtuoso Telêmaco, filho de Ulisses e de Penélope, que por anos procurou o pai após a guerra de Troia. A obra de Joyce começa com Stephen e termina com o monólogo de Molly, mas o protagonista é Leopold, um franzino judeu que nos faz rir e desperta compaixão; Leopold perde o filho e pensa reencontrá-lo em Stephen; ama a esposa Molly que o trai. Leopold é um intruso na Irlanda, como o foi James Joyce. É muito difícil fazer uma síntese desse monumento da literatura. Em todo caso, segue a delongada explicação abaixo.

Em “Ulisses”, Joyce combina o virtuosismo técnico da paródia com o tratamento psicológico dado aos seus três personagens principais: Stephen Dedalus, Leopold Bloom e Molly Bloon. Assim, ao compor seu romance em dezoito episódios, portanto me­nos seis do que aqueles em que se divide a ”Odisseia”, Joyce vai abandonar alguns da obra grega, alterar a ordem daqueles que usa, ante­cipando certos episódios e pospondo outros, criando um episódio onde não havia um no original, a fim de enfatizar os processos psí­quicos e os conflitos psicológicos de seus personagens, que são os que mais lhe interessam.

Inúmeros são os recursos paródicos empregados por Joyce, quanto ao tema propriamente dito, aos personagens e ao papel que de­sempenham, aos episódios de que se apropria, sem obedecer à ordem em que ocorrem no modelo homérico, à diversidade dos estilos usa­dos com finalidade precisa, às inúmeras citações de obras, sobretudo shakespearianas, ou aos vocábulos latinos, hebraicos, franceses, irlan­deses, italianos, espanhóis, alemães, inseridos naturalmente no texto.

Consideremos inicialmente o tema de ambas as obras. A ”Odisseia” narra a história de um herói, Odisseu, rei de Itaca, casado com Penélope, que, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia  (construiu o dito “Cavalo de Troia, de madeira) -, por sua prudência e sagacidade, levou mais dez anos para retornar ao seu reino e à sua casa. Viu cidades e po­vos diferentes e passou a conhecer-lhes os costumes. No caminho de volta, enfrentou uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Lutou para preservar sua vida e as de seus companheiros, mas não conseguiu salvá-los.

Mostra-nos também, paralelamente, a história de como sua mulher, Penélope, o aguardou fielmente, embora assediada por pre­tendentes à sua mão que, instalados em sua propriedade, esperavam ansiosos serem os substitutos escolhidos do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, vendo-se despojado de seus bens e aconselhado pela deusa Palas Atena, protetora de Odisseu, sai em busca do pai.

Temos, assim, em resumo, as aventuras do herói Odisseu em sua epopeia de volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.

Em “Ulisses”, naquele longo dia 16 de junho de 1904, Leo­pold Bloom – o Ulisses de Joyce-, depois de um dia particulannete atribulado, perambulando por Dublin retorna à sua casa e ao se deitar ao lado da mulher, Molly, pede-Ihe que lhe traga, no dia se­guinte, o café-da-manhã na cama, fato inusitado que não ocorria havia onze anos, desde a morte do filho Rudy. Durante todo aque­le tempo, fora ele que a servira.

Naquele mesmo dia, Molly, que além de ser a Sra. Marion Bloom também era uma cantora, cometia adultério com seu empresário Blaze Boylan. Desta traição, Bloom tivera plena consciência o dia todo.

Diferentemente de “Odisseia”, Stephen Dedalus – o Telêmaco da obra de Joyce -, embora insatisfeito com o pai que tem, não está interessado em procurar-lhe um substituto, como o dese­jara no final de “Um Retrato do Artista Quando Jovem”. Aquele que, na verdade, continua sonhando em ter um filho homem é Bloom, e será ele que tentará, através de uma proposta que lhe parece in­teressante, convencer Stephen a morar com ele e Molly. Tal pro­posta, no entanto, será delicadamente recusada pelo jovem.

Temos, assim, diversamente do modelo grego, um marido traído que, ao invés de lavar a honra com sangue, inverterá com pa­lavras uma situação existente há onze anos; uma mulher que não se mostra fiel, cometendo naquele dia adultério, e um pai procurando um filho, ao invés de um filho em busca dc um pai.

Para Joyce, como ele o confessa ao amigo Frank Budgen, o mais completo herói clássico, e por isso por ele escolhido, é Ulisses, por ser filho de Laerte, pai de Telêmaco, marido de Penélope, amante de Calipso, companheiro de armas dos guerreiros gregos em Troia e rei de Ítaca. Submetido a inúmeras provações, superou-as com sabedoria e coragem.

Seu Ulisses moderno, Leopold Bloom, também é por ele descrito como “filho, pai, amante, amigo, trabalhador e cidadão”. Além do mais, ainda sempre a mesma pessoa bondosa, humana, prudente, equilibrada, submissa, tragicamente isolada, astuta, cética, simples, não reprovadora, com um exterior aparentemente sua­ve e maleável, mas com uma essência íntima, inflexível, de auto-suficiência. No entanto, diversamente de Odisseu, ele não tem uma deusa Palas Atena para protcgê-lo. Terá de depender de sua própria sabedoria e de seus frágeis recursos humanos.

Molly Bloom, a Penélope de Joyce, totalmente diversa de seu modelo grego, é assim descrita por seu criador: uma “Weib” (mulher) sã de espírito, totalmente amoral, fertilizável, inconfiável, cativante, perspicaz, limitada, prudente, indiferente — “Ich bin das Fleisch das stets bejabt”. Ou seja: “Eu sou a carne que sempre diz sim”.

Na verdade é isso que ela faz, ela diz sim à vida, no seu sentido mais amplo da palavra. Outras inversões irônicas ainda ocorrem, como no caso do Sr Deasy, diretor da escola em que Stephen leciona, que parodia Nestor, o mais sábio dos guerreiros gregos, embora esteja longe de possuir a sabedoria do modelo grego. Imbuído de preconceitos, con­sidera as mulheres, a partir de Eva e de seu pecado original, respon­sáveis por todo o mal existente na terra, e os judeus, com suas rique­zas, merecedores de continuar errantes pelo mundo afora. Para ele o dinheiro é tudo na vida, pois “dinheiro é poder”, o que leva Stephen a se indagar se é isso a “sabedoria”.  Contrastando com as sereias, que em “Odisseia” são peri­gosas por enfeitiçarem os homens com sua música e seus encantos e os arrastarem para a morte, as sereias em Ulisses são duas garçone­tes do bar do Hotel Ormond. Uma delas, senhorita Douce, tem o cabelo bronzeado e a outra, senhorita Kennedy, o tem dourado. Elas tentam em vão ser sedutoras, desdenhando quem por elas mos­tra interesse, como Lenehan, embora sejam menosprezadas por aquele que desejariam seduzir, Blaze Boylan.

A Nausicaa do Ulisses de Joyce, Gertie MacDowell, é uma jovem bonita de rosto que, diversamente da moça ingênua e pura do original grego, é provocante. Conhecedora de seus dons e de sua beleza, seduz aquele homem mais velho e interessante – Bloom – que fantasia ser o homem ideal de sua vida.

Parodiando Circe, que em “Odisseia” é uma feiticeira fascinante que atrai os homens que dela se aproximam e os transforma em porcos, mantendo-os aprisionados em seu covil, em Ulisses a luxúria, o egoísmo, a sordidez, simbolizando os porcos do mode­lo grego, estão presentes na zona dos bordéis em que Bloom pene­tra em busca de Stephen e nas fantasias de toda sorte, inclusive as de poder e de perversão do herói joyciano.

Em “Ulisses”, além da inovação de uma narrativa revolucionária, baseada no fluxo da consciência através do monólogo interior, Joyce criou um herói muito especial, totalmente diferente do herói-padrão do início do século XX. De fato, ciente da traição da mulher naquele atormentado dia 16 de junho de 1904, ele reage de uma forma inesperada para a época. Embora enciumado, atormentado e sofrido, ele reflete com clareza que “cada um que entra (na cama) se imagina ser o primeiro a entrar enquanto ele é sempre o último termo de uma série precedente mesmo se ele for o primeiro de uma série subsequente, cada um se imaginando ser o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é nem o primeiro nem o último nem o único nem sozinho numa série originada então e repe­tida ao infinito”.

Tal pensamento jamais poderia ser admitido por um ho­mem preso aos códigos vigentes na sociedade do início de século XX. Seria inadmissível para ele chegar à conclusão à qual Bloom chegou, ao considerar a atitude a tomar diante da situação que enfrentava: . “Assassinato, nunca, visto que dois erros não tornam um certo. Duelo por combate, não. Divórcio, agora não”.

 

 

Bloom é, na verdade, um homem muito bom e avesso à violência que sabe conviver com suas frustrações, limitações e fra­quezas; que, em sua visão realista de si mesmo, aceita a traição por saber que, ao menos naquele momento de sua vida, não consegue existir sem a mulher amada. Ele é o herói moderno, ou melhor, o anti-herói que, em sua luta diária pela sobrevivência nem mesmo sabe o quão heroico é e tanto nos seduz.

Lembra-nos o homem absurdo de Camus, que aceita a luta, não despreza de forma alguma a razão e admite o irracional, pois re­conhece que o absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.

Ao se referir a “Ulisses” em conversa com o jovem amigo Arthur Power, em “Conversations with James Joyce”, Joyce, plenamente conscien­te da revolução que efetuava na literatura, diz: “Quanto ao classicismo romântico que você tanto admira, ‘Ulisses’ mudou tudo isso, pois nele eu abri um novo caminho e você vai ver que ele será seguido cada vez mais. De fato, a partir dele você pode datar uma nova orientação na li­teratura – o novo realismo, pois, embora você critique ‘Ulisses’, contudo a única coisa que você tem que admitir que eu fiz foi liberar a litera­tura de seus grilhões antiquados. Você é evidentemente um tradicio­nalista intransigente, mas deve perceber que uma maneira nova de pensar e de escrever foi iniciada, e aqueles que não concordarem com ela serão deixados para trás.” E em seguida acrescenta: “Em ‘Ulisses’ pro­curei expressar as múltiplas variações que constituem a vida social de uma cidade – suas degradações e suas exaltações.”

Realmente, tudo acontece naquele bendito dia 16 de junho de 1904: nascimento, morte, frustração, alegria, rejeição, traição, prazer, masturbação, menstruação, tudo, enfim, que um ser humano vi­vencia. Ulisses é, na realidade, uma extraordinária comédia humana.

Entre o “Ulisses” de Joyce e a “Odisseia” de Homero, vários sécu­los se interpõem. O tempo pode, sem dúvida alguma, distanciá-los, mas o virtuosismo, o requinte técnico da paródia joyciana amarra, implacavelmente, os dois gênios da expressão artística.

A seguir, os personagens e fatos pricipais da obra monumental.

 

1. Telêmaco

A “Odisseia” de Homero começa com o relato do conselho dos deuses no Olimpo, pa­ra decidir sobre o destino de Odisseu, cativo da ninfa Calipso em sua ilha Ogígia. Instado pela deusa Palas Atena, Zeus decide que já é hora de Odisseu retornar à sua casa. A cena seguinte apresenta Telêmaco em Ítaca, preocupado com a ausência do pai e com o assédio dos candidatos à mão de Penélope, sua mãe, na ânsia que eles têm de conquistá-la e de se apossar de seus bens.  A deusa Palas Atena, protetora de Odisseu, aparece a Telêmaco, ora disfarçada em Mentes, rei de Tafo e amigo de Odis­seu, ora sob a forma de Mentor, guardião da casa e dos escravos na ausência do rei. Ela aconselha Telêmaco a sair em busca do pai e consegue convencê-lo a partir, fornecendo-lhe os meios necessários para o cumprimento de sua missão.

Em “Ulisses” de Joyce, diversamente de Telêmaco, Stephen Dedalus não parte da Torre Martelo, que divide com o companheiro Buck Mulligan, em busca do pai, mas para dar aula na escola dirigida pelo Sr Deasy, sem contudo saber onde irá morar daquele dia em diante. Nesse episódio, Joyce ainda parodia Hamlet de Sha­kespeare. Como Hamlet, enlutado pela morte do pai, Stephen se mantém de luto pela mãe e é admoestado por Mulligan, que, assim como Cláudio justificara a mor­te do irmão ao sobrinho Hamlet, a apresenta como o fim inevitável e natural de to­do ser humano. Igualmente paródico é o fato de Mulligan ser visto por Stephen co­mo usurpador, lembrando o fato de que Cláudio fora o usurpador da coroa do so­brinho, herdeiro presuntivo do trono da Dinamarca.

Lembra também Hamlet a pre­sença do fantasma da mãe na mente de Stephen, a cobrar-lhe o arrependimento de seus pecados, como o fantasma do velho Hamlet cobrara vingança do filho.

 

2. Nestor

Em “Odisseia”, Telêmaco procura o sábio e ilustre guerreiro Nestor, para dele obter alguma informação sobre seu pai. Infelizmente, Nestor não tem notícias de Odisseu, mas relata o retorno de tios guerreiros gregos de Troia, assim como a chegada ao lar de Agamenon, seu assassinato e a vingança de Orestes da morte do pai. Aconselha ain­da Telêmaco a procurar Menelau para dele, talvez, obter informações mais precisas sobre o paradeiro de Odisseu.

Em “Ulisses”, Stephen procura o Sr Deasy, diretor da escola em que leciona, para receber o seu salário. É o Sr Deasy quem lhe faz um pedido: ao lhe entre­gar um artigo que escrevera sobre a febre aftosa no país, lhe pede que tente obter sua publicação no jornal. Aos preconceitos do diretor e a sua obsessão por dinheiro, Stephen, com objetividade e clareza, se pergunta, numa alusão a Nestor, se essa é a velha sabedoria.

 

3. Proteu

Em “Odisseia”, Telêmaco chega à casa de Menelau durante a festa de casamemo do seu filho. Menelau conta a Telêmaco sobre seu retorno ao lar, depois da guerra de Troia. Narra também como, orientado pela filha de Proteu, aprendeu onde encontrá-lo, como pegá-Io e mantê-lo firme para obter as informações desejadas, pois Proteu tomava as mais diversas formas para escapar aos que desejassem capturá-lo. Assim feito através dos ensinamentos recebidos, Menelau obteve dele várias informa­ções, inclusive a de que Odisseu se encontrava cativo na ilha de Calipso.

Em “Ulisses”, Joyce transfere a mutabilidade proteica para a luta que Stephen trava com o intelecto. Caminhando pela praia, Stephen luta, em sua mente, com o problema da mudança da face do mundo, em relação à realidade que esconde por trás dela. Tal revelação é alcançada por meio dos modos mutáveis e limitados do au­dível e do visível, segundo Aristóteles, dentro das dimensões do espacial (Nebeneinander) e do temporal (Nacheinander). Segundo Joyce confessa ao amigo Frank Budgen, nesse episódio tudo muda: terra, água, hora do dia, partes da linguagem, o pró­prio advérbio tornando-se verbo – (almosting). Até o cachorro que perambula pela praia vai fuçar a areia com fúria e parecer proteicamente uma pantera.

 

4. Calipso

No livro 5 de “Odisseia”, Odisseu é descoberto cativo da deusa Calipso (cujo nome sig­nifica “a dissimuladora”), na ilha Ogígia (ônfalo – segundo os gregos: centro da Terra). Compadecida ante a situação de Odisseu, Palas Atena intercede junto a Zeus para que mande Hermes com um recado para Calipso, a fim de que ela liberte o rei de Ítaca. De fato, Odisseu ficara ali aprisionado por sete anos, lamentando sua escravidão e an­siando por voltar para casa. Calipso promete a Hermes libertar Odisseu e instruí-lo co­mo chegar a salvo em sua terra. Ele parte, mas é interceptado por trovoadas fortes e, mais uma vez, Palas Atena intercede junto a Zeus para que acalme o temporal.

Em “Ulisses”, Bloom está em sua casa em 7 Eccles Street, em 1904, uma rua respeitável da tradicional classe média. Molly, assim como Calipso, a ninfa que enfeitiçou Odisseu durante sete anos, também mantém Bloom cativo de seus encantos, através de todo aquele dia tão longo. Embora ele saia de casa de manhã, tenha um dia bas­tante atribulado e só retorne durante a madrugada, Molly permanece em seus pensamentos como uma imagem que o seduz e, ao mesmo tempo, o faz sofrer.

 

5. Os lotófacos

Em “Odisseia”, tendo desembarcado na terra do rei Alcino, Odisseu é por ele rece­bido na corte e lhe revela quem é, a saber, o rei de Ítaca. Começa então a relatar seus encontros anteriores ao desembarque na ilha de Calipso. Primeiro, conta sua chega­da à terra dos lotófagos, onde ele e seus companheiros comem e bebem. No entan­to, aqueles que aceitam comer o lótus perdem o desejo de partir. Tendo o efeito de uma droga, a planta os reduz à inércia e os faz esquecer sua terra, seus lares, tornando-os apenas desejosos de permanecer onde estão, sem fazer nada. Odisseu tem de forçá-los a retornar ao navio e eles partem imediatamente.

Em “Ulisses”, esse pequeno incidente, inserido no episódio “Os ciclopes” de “Odisseia, é utilizado por Joyce para explorar a sensação de inércia, que transmitirá através da linguagem e das imagens. Assim, enquanto caminha pela cidade, o que Bloom vê e os pensamentos que lhe vêm à mente sobre o que vê são registrados de forma a expressar o tom ocioso, receptivo e repousante do episódio. Imagens de in­dolência oriental, de alimentos sendo comidos, de perfumes e de flores contribuem para sugerir inação e impotência, culminando com a languidez de um banho de imersão em que Bloom flutua como uma flor. Enrtorpecimento e letargia, narcose libidinal e mental são estreitos correlativos nesse episódio, em que os efeitos do ló­tus estão localizados nas poções de Sweney, o farmacêutico, nos “filtros do amor” ou nas “curas de Lourdes, águas de olvido”.

 

6. Hades

Em “Odisseia”, aconselhado por Circe, Odisseu vai ao Hades, o reino das sombras e dos mortos, pura consultar o profeta Tirésias e saber, antes do seu retorno, o futuro que o aguarda em Ítaca. Tirésias lhe diz que Posidon tentará impedir seu retorno ao lar e o aconselha a não matar os bois sagrados de Hélio, deus-do-sol, porque caso o faça perderá todos os seus homens e terá sua jornada bem dificultada. Promete-lhe, contudo, que chegará são e salvo a Ítaca e que exterminará todos os pretendentes que assediam Penélope em sua casa.

Em “Ulisses”, a paródia à visita de Odisseu ao Hades é a ida de Bloom ao ce­mitério Glasnevin, para o enterro de Paddy Dignam, o que faz não por obrigação, mas levado por seu espírito de solidariedade. São seus pensamentos e reações diante da mor­te que acompanhamos aqui. A técnica utilizada nesse episódio é a do incubismo (de in­cubus, espírito maligno responsável pelos pesadelos e aparições de espectros). Realmen­te, a mente de Bloom vagueia pela conversa imaginária com “o pobre velho bisavô”, pe­la sensação de rejeição provocada pelas piadas anti-semitas e menção reprovadora de sui­cídio, pelas lembranças do filho morto e suicídio do pai. Bloom se preocupa com a fi­nalidade física da morte e lhe desagrada pensar na ressurreição final, pois lhe repugna a ideia de “cada individuo caçando seu fígado e seu cérebro e o resto dos seus troços”.

 

7. Éolo

Em “Odisseia”, Éolo, favorito dos deuses e guardião dos ventos, acolhe amigavelmen­te Odisseu e o ajuda em sua viagem de volta a Ítaca, confinando em uma sacola de couro todos os ventos tempestuosos e desfavoráveis. Recomenda insistentemente a Odisseu que a sacola não seja de forma alguma aberta. No entanto, já próximos de Ítaca, os companheiros se aproveitam de um momento de descanso de Odisseu para abrir a sacola, libertando os ventos tempestuosos, que devolvem os barcos à praia de onde haviam partido. Ao recorrer novamente a Éolo, Odisseu é por ele rudemente re­pelido e expulso de suas terras, por terem os seus homens provocado a ira dos deuses.

Em “Ulisses”, Bloom terá sorte semelhante à de Odisseu.  A proposta de um anúncio para a empresa Chaves, que ele apresenta a Myles Crawford, editor do Freeman, é inicialmente implícita e cordialmente aceita, dependendo de uma condição imposta pelo jornal. Quando, no entanto, Bloom regressa com a resposta positiva de Chaves, é recebido por um Crawford que, inesperadamente, o trata com rispidez e grosseria, ignorando a aquiescência anterior. Joyce parodia a fúria dos ventos com o barulho das máquinas da sala de imprensa, com seu ininterrupto “Slt, Slt”, ao qual se juntam os gritos dos pequenos jornaleiros, as portas a baterem, as pessoas a corre­rem, aos empurrões, tendo como pano de fundo o barulho dos bondes na rua e o re­tinir de suas sinetas. São também paródicos os estilos distintos, com profusão de figuras retóricas, sugerindo a diversidade das pessoas que entram no jornal.

 

8. Os lestrígones

Em “Odisseia”, Odisseu, depois de repulso pelo rei dos ventos, Éolo, apor­ta na ilha dos lestrígones, em cuja baía todos os navios ancoram, com execção do seu. Um grupo pequeno de seus homens desembarca e é levado por uma jovem para a casa de seu pai, Antifanes, rei dos lestrígones. Este é um gigante e um canibal, que logo devora um do grupo enquanto os outros fogem. Irritado, ele juntamente com seus homens, destrói os navios ancorados e mata a tripulação, só escapando Odisseu, seus homens e seu barco.

Em “Ulisses”, é hora do almoço e há um cheiro de comida por toda parte por onde Bloom passa, em busca de um lugar para comer. Finalmente, levado pela fome, ele se dirige para o restaurante Burton, mas, ao entrar, o desejo de comer é substituído por uma sensação de repugnância. Um cheiro forte e desagradável lhe in­vade as narinas, e a visão de pessoas comendo sôfrega e vorazmente lhe tira o apeti­te. Parecem canibais, o que o faz pensar nas vantagens do vegetarianismo, que não sacrifica animais. Sai então apressadamente, indo, por fim, fazer uma refeição ligei­ra – um sanduíche e vinho – no bar Davy Byrne.

 

9. Cila e Caribde

Em “Odisseia”, ao sair da ilha de Circe, Odisseu deverá escolher entre dois rumos a seguir: ou as rochas ondulantes ou o estreito que tem de um lado Cila e do outro Caribde. Ele opta pelo estreito, orientado por Circe, e escolhe ficar mais próximo da margem de Cila, o monstro de seis cabeças e 12 pés, do que da margem de Carib­de, o redemoinho escuro que traga as embarcações que o desafiam. Apesar de perder alguns homens, destruídos por Cila, ele consegue atravessar o estreito, vencendo as­sim o temível obstáculo.

Em “Ulisses”, Cila e Caribde são metáforas. Os dois perigos são mais orató­rios do que físicos. Um encontro de intelectuais da elite irlandesa, na Biblioteca Nacio­nal, apresenta de uma certa forma uma ameaça para Stephen Dedalus. Como Odis­seu é ele que, com sua inteligência e perspicácia, ao expor sua teoria sobre Shakespea­re, consegue passar incólume pelos diversos Cilas que aguardam uma oportunidade pa­ra se apoderar de suas afirmações, a fim de destruí-las, embora não o consigam.

 

10. As rochas ondulantes

Em “Odisseia”, “as rochas ondulantes” não chegam a constituir um episódio, apenas uma breve referência feita por Circe a Odisseu sobre o possível rumo por ele tomado para retornar a Ítaca são e salvo. Desaconselha-o, contudo, de segui-lo, pois, por elas, nem mesmo seres alados conseguem passar ilesos. Sugere uma ou­tra alternativa, a passagem entre Cila e Caribde, que é a escolhida por Odisseu. Diz a lenda, segundo Stuart Gilbert, que a “ondulação” das rochas resulta de uma ilusão de ótica. Essas rochas, projetando-se acima da superfície do mar, pareceriam estar mu­dando de posição o tempo todo. Pareceriam estar, assim, se movimentando em dire­ção às embarcações, como a cercá-las, atraindo-as traiçoeiramente em sua direção.

Em “Ulisses”, o que parece desestruturado constitui, na verdade, uma estru­tura especial. O episódio consiste em 18 cenas curtas, seguidas de uma coda (parte final), descre­vendo a passagem do vice-rei através de Dublin. Todas essas cenas se passam nas ruas de Dublin entre três e quatro horas da tarde, e seu sincronismo é indicado pela inser­ção, em cada fragmento, de um ou mais trechos dos outros fragmentos. Joyce cons­truiu um labirinto de pequeno calibre, dentro do qual a maior parte dos personagens aparece, descrita isoladamente em seus afazeres, dentro do contexto da comunidade dublinense a que pertencem. O método aqui utilizado por Joyce é o da paródia esti­lística, explorando os estilos pessoais dc cada um dos indivíduos envolvidos.

 

11. As sereias

Em “Odisseia”, ainda uma vez orientado por Circe, Odisseu e seus homens conseguem passar navegando incólumes pelas duas sereias em suas ilhas, resistindo aos seus cantos envolventes, por se terem preparado antecipadamente para enfrentá-las. Instruído por Circe, Odisseu faz com que seus companheiros o amarrem fortemente no mastro do barco, podendo, assim, ouvir as canções sedutoras sem, contudo, atender ao seu apelo, enquanto eles próprios têm seus ouvidos tapados com cera, indiferentes, portanto, aos protestos e rogos de seu chefe que suplica que o soltem.

Em “Ulisses”, além das duas garçonetes, senhorita Douce e senhorita Kenne­dy, destituídas do fascínio das verdadeiras sereias, o episódio se distingue por ser uma extraordinária paródia musical. Na verdade, ao emprego muito especial de palavras, com seus sons e ritmos, Joyce acrescenta uma linguagem moldada à maneira de fuga “per canonem” – uma fuga em contraponto. O resultado é uma paródia tanto da estru­tura da língua quanto da estrutura da música.

 

12. Os ciclopes

Em “Odisseia”, Odisseu narra sua aventura na terra dos ciclopes, gigantes de um olho só. Conta que foi ali aprisionado com seus homens na caverna do gigante Polifemo, que, depois de ter devorado dois deles, festeja o feito. Odisseu aproveita, então, para embebedá-lo e, enquanto o faz, declara seu nome ser “Ninguém”. Durante a festa, Polifemo bêbado, dorme e Odisseu aproveita para cegá-lo. Desesperado de dor, Polifemo grita, dizendo aos gigantes que vêm em seu socorro que Ninguém o destruiu. Os vizinhos, então, zombam dele e não o socorrem. No dia seguinte, Odisseu e os companheiros es­capam de Polifemo, escondidos entre seus carneiros. Ao chegar ao barco, Odisseu grita seu verdadeiro nome para Polifemo, que, encolerizado por ter sido enganado, atira em sua direção uma pedra enorme, que, felizmente, não atinge o herói grego.

Em “Ulisses”, o Cidadão, figura gigantesca que não tem sequer um nome próprio – é um típico irlandês ou a Irlanda -, também, metaforicamente, tem ape­nas um olho: não consegue ver ou aceitar nenhum outro ponto de vista que não se­ja o seu, radical e extremado. Outra forma de gigantismo, além do ego inflado do Cidadão, pela qual Joyce parodia o modelo original, é expressa pela grande varieda­de de estilos usados no episódio, cada um deles sendo uma caricatura intumescida dos estilos jurídico, épico, científico, jornalístico e outros mais, como assinala Harry Blamires em “The Bloomsday Book”. Cansado da agressividade gratuita do Cidadão, Bloom, finalmente, revida os ataques e é, ironicamente, quase atingido pela lata de biscoito que o agressor lança sobre ele.

 

13. Nausicaa

Em “Odisseia”, Odisseu, tendo partido da ilha de Calipso, é atormentado por Posídon, pai de Polifemo, e por ele, finalmente, lançado à foz de um rio na terra dos feácios. Exausto e nu, ele se esconde numa moita e adormece. Por sugestão de Palas Atena, que lhe aparece em sonho, Nausicaa, filha do rei Alcino, vem com suas da­mas ao rio para lavar a roupa do palácio. Ali, brincando, rindo, jogando bola, elas despertam Odisseu. Embora suas companheiras se assustem, embaraçadas com o que veem, Nausicaa se ocupa de tudo com simplicidade; limpa e cobre Odisseu, e lhe mostra como chegar ao palácio.

Em “Ulisses”, Bloom é seduzido por Gertie MacDowell, que, não possuin­do a pureza e a simplicidade de Nausicaa, tem consciência de seus dotes físicos e po­der de sedução e os usa para enfeitiçar aquele homem mais velho e atraente, senta­do à sua frente, nas rochas da praia de Sandymount. O estilo aqui empregado por Joyce é sentimental e folhetinesco. O episódio é uma paródia do romance sentimen­tal, com todos os clichês e imagens que lhe são próprios.

 

14. O gado do sol

Em “Odisseia”, saindo da ilha de Circe, Odisseu e seus companheiros aportam na ilha de Hélio, o deus do sol. Avisado por Tirésias de que os bois sagrados do lugar não podem ser mortos ou comidos, Odisseu adverte seus homens da gravidade de tal crime e os faz jurar não tocar nos animais. No entanto, cansado adormece e eles, dominados pela fome incontrolável, desobedecem às suas ordens. Encolerizado, Hélio exige de Zeus punição para o crime e, ao partir, a embarcação deles é atingi­da por um raio e todos morrem, com exceção de Odisseu.

Em “Ulisses”, a paródia reside nas brincadeiras irreverentes e cínicas dos es­tudantes de medicina, reunidos na Maternidade, as quais constituem uma es­pécie de sacrilégio contra as pacientes, que, como o gado do sol, são símbolos de fer­tilidade. Apenas Bloom discorda do comportamento inadequado dos rapazes, e só ele permanece sério. A forma mais rica de paródia nesse episódio é a diversidade dos es­tilos, que se estendem da fase embrionária da língua inglesa ainda marcada por uma sintaxe e um vocabulário latinos, passando pelo anglo-saxão, pelo Middle English, pelas prosas de sir Thomas Mallory, dos séculos XVI e XVII, pelos estilos de Samuel Pepys, George Moore, Daniel Defoe, Jonathan Swift, Richard Steele, Oliver Golds­mith, Edmund Burke, Richard Sheridan e outros mais até chegar ao “pidgin English” (dialeto do inglês) com seu estilo sintática e semanticamente desintegrado. Joyce se refere a esse episódio como uma alegoria na qual Bloom é o es­permatozóide, o hospital, o ventre, a enfermeira, o óvulo, e Stephen, o embrião.

 

15. Circe

Em “Odisseia”, depois das aventuras desastrosas com Éolo e os lestrígones, Odisseu aporta na ilha de Circe. Ali, alguns de seus companheiros partem para explorar o lo­cal e, depois de serem recebidos com festejos em seu palácio pela feiticeira Circe, são drogados e transformados em porcos, indo se juntar às vítimas anteriores de suas bruxarias. Informado do ocorrido por Euríloco, que fora com eles mas se esquivara de entrar na mansão, Odisseu vai à procura de seus homens e, auxiliado por Her­mes, se prepara para salvá-los. Imunizado pela droga mágica, moly, que o deus lhe dá, e por ele instruído como agir, Odisseu consegue dominar Circe. Só depois de ver os companheiros restituídos à sua forma humana ele consente deixar-se levar por Circe para o seu leito.

Em “Ulisses”, é a bestialidade das vítimas de Circe que é parodiada por Joyce, através do ambiente sórdido da zona dos bordéis em que Bloom vai parar, em sua tentativa de encontrar Stephen, que, bêbado, precisaria de sua proteção. Um es­tilo teatral, surpreendente e notável, é empregado para dramatizar as fantasias eróti­cas de Bloom, mescladas de sentimento de culpa e seus sonhos de poder incontrolá­veis e vãos, assim como para retratar a libertação de Stephen do fantasma da mãe. Enquanto Odisseu domina Circe pelo poder imunizante de uma droga mágica, Bloom, indefeso, é arrastado por suas fantasias, nelas mergulhando.

 

16. Eumeu

Em “Odisseia”, ao retornar a Ítaca, Odisseu se apresenta, disfarçado de mendigo, na ca­bana do guardador de porcos Eumeu, a quem conta uma história falsa para justificar a sua chegada, como estrangeiro, à terra. Quando seu filho, Telêmaco, que ele mandara chamar, chega, Odisseu lhe revela ser seu pai e, juntos, planejam destruir os pretenden­tes à mão de Penélope, que há tanto tempo a importunam e consomem seus bens.

Em “Ulisses”, embora o abrigo perto de Butt Bridge corresponda à cabana de Eumeu, e seu zelador Pele-de-Cabra seja imperfeitamente comparável ao perso­nagem homérico, não existe uma equivalência exata entre esse episódio e o de “Odisseia”. O relato falso que Odisseu faz de sua viagem pode ser equiparado à basófia do marinheiro Murphy, ao contar, no abrigo, suas aventuras diante de Bloom e de Stephen. Além disso, a auto-revelação de Bloom para Stephen e a de Stephen pa­ra Bloom – mal interpretada em vários aspectos por Bloom – ecoam o encontro de Odisseu e Telêmaco.

 

17. Ítaca

Em “Odisseia”, ainda disfarçado de mendigo, Odisseu usa um estratagema para en­trar em seu palácio, assim como Bloom o faz para entrar em casa de madrugada, ten­do esquecido a chave. O estado em que se encontra seu lar perturba Odisseu, assim como perturba Bloom ao penetrar no dele. Antinoo, um dos principais pretenden­tes à mão de Penélope, irritado com Odisseu, atira nele um banquinho; Bloom tam­bém esbarra na mobília que fora mudada de lugar. Odisseu e Telêmaco encurralam os candidatos no salão e Stephen, por sua vez, ajuda a trancar a porta da casa de Bloom. Depois que Odisseu é o único capaz de retesar seu próprio arco, na compe­tição que fora estabelecida, feito este comemorado por Zeus com um ribombo de trovão, ele se junta a Telêmaco e, finalmente, destroem os pretendentes importunos, que, por tanto tempo, haviam assediado Penélope.

Em “Ulisses”, além dos paralelos mencionados, nesse episódio – preferido por Joyce, embora por ele visto como seu “patinho feio”, com seu estilo catequético de perguntas e respostas — o processo de reivindicação de direitos é bem diverso. Na ver­dade, o que Bloom utiliza contra o seu rival não é uma arma, mas simplesmente a palavra. De retorno à sua casa na companhia de Stephen, a longa conversa que com ele mantém revela o que ambos possuem em comum — Blephen, Stoom – e o que os distingue, e contribui para que ele diga a Molly aquelas palavras que a perturbarão ao alterar a rotina da casa. Esse episódio, embora não o pareça, é rico em interpreta­ções psicológicas, particularmente no que se refere à personalidade de Bloom.

 

18. Penélope

Em “Odisseia”, Penélope é despertada pela ama, que lhe informa que Odisseu regres­sou e exterminou todos os candidatos que a assediavam. A princípio, Penélope se ne­ga a acreditar nas palavras da ama e quando desce ao encontro de Odisseu ainda es­tá relutante, testando-o de toda maneira possível. Só se convence, finalmente, quan­do ele menciona o segredo da construção e a imutabilidade do leito conjugal, que ape­nas os dois conhecem. Somente, então, unidos pelo amor, eles se recolhem ao quar­to, contam suas histórias um ao outro e o poema termina em paz e harmonia.

Em “Ulisses”, um mergulho no mundo íntimo de Molly Bloom nos reve­la as suas reações extremamente femininas, provocadas pelas últimas palavras de Bloom antes de adormecer. De fato, ele pede a Molly que lhe traga o café-da-manhã na cama, fato inusitado que não ocorria desde a morte do filho Rudy, havia onze anos. Durante todo aquele tempo, fora ele que se incumbira dessa tarefa. Revela ainda esse episódio que, embora não seja o modelo de virtude conjugal do original grego, Molly não é aquela mulher devassa e desonesta, decantada por al­guns. É, na verdade, acima de tudo, uma criatura espontânea, romântica, extrema e inconformadamente solitária, assim como sedenta de carinho, que não receia di­zer sim à vida e ao amor.

 

CONCLUSÃO

Esses são os dezoito capítulos – episódios – da obra monumental que foi escrita entre 1914 e 1921, descrevendo os fatos ocorridos em 16 de junho de 1904 e na madrugada seguinte. O episódio final (18º), retro explicitado, se desenrola na cama que Leopold Bloon e Marion, ou Molly, sua mulher, compartilham em Dublin, pouco antes do amanhecer. Eles têm uma filha adolescente chamada Milly. Molly é uma mulher de trinta e poucos anos, preocupada com a barriga, que lhe parece estar ficando um pouco grande; mas suas formas são generosas e ela se tranquiliza afirmando que as magrinhas não estão mais na moda. Nessa madrugada, a palavra mais célebre pronunciada por Molly , ao nascer do sol, foi “sim”, e também a última. É tida como a personagem mais exuberante do século XX, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance. Foi um trabalho genial produzido na literatura. Nesse livro estão contidos em germe os condimentos e materiais básicos da criação artística fundamental de Joyce. Nele, apesar da linearidade narrativa, se expressam problemas do espírito, o aleatório do curso da vida, a luta do indivíduo, a emergência da pessoa, a vocação e todos os seus meandros de obstáculos, e o mito da busca da arte e da beleza, bem como do sentido da vida como um todo. Na verdade, parece um monólogo interior numa sucessão de estilos díspares inédito na história do romance moderno.